Barney Panofsky tem 65 anos e, com a casa mais silenciosa e os filhos já fora do alcance diário, passa a viver rodeado por vozes que não obedecem. “A Minha Versão do Amor”, dirigido por Richard J. Lewis, coloca Paul Giamatti no centro de um relato em que Rosamund Pike e Dustin Hoffman funcionam como polos de força, e o conflito se impõe sem rodeios: depois que um detetive publica um livro acusando Barney de ter feito o melhor amigo, Boogie, desaparecer, ele decide recontar a própria vida para sustentar sua versão dos fatos.
Essa decisão não vem limpa, nem heroica. O filme não trata a lembrança como linha reta; ela volta, escapa, troca de direção, muda de humor num instante. Não é enfeite. Cada salto no tempo parece uma tentativa de alcançar o ponto em que a acusação começa a arder, e cada desvio tem gosto de fuga, porque admitir demais significaria abrir mão do único território que Barney ainda tenta comandar: a narrativa. Só que a narrativa cobra: quanto mais ele fala, mais expõe a necessidade de estar certo.
Itália, pressa e o primeiro pacto afetivo
Na Itália, a primeira grande escolha nasce de impulso disfarçado de dever. Barney acredita quando Clara diz estar grávida e coloca um anel numa relação que não pede estabilidade, movido pela ideia de “fazer o correto”. A convivência, porém, aparece como obstáculo rápido, e não depende só dela. Ele não sustenta rotina, não sabe ceder espaço, não aguenta ficar. O efeito é imediato: a comédia se alimenta do desconforto de um homem tentando posar de adulto enquanto falha no básico; o drama entra pelo preço dessa pressa, que depois volta como culpa ou irritação.
Miriam e o casamento que vira contradição
A etapa seguinte repete o padrão, só que com outra moldura social. Barney casa de novo, agora cercado de dinheiro e tradição, e é justamente no dia desse casamento que ele encontra Miriam e decide, quase com insolência, que aquela mulher — que não é a noiva — vai ser a grande aposta afetiva da sua vida. Ele transforma desejo em plano. Insiste, manda presentes, força proximidade, como se o compromisso recém-assinado fosse só papel. O obstáculo é evidente e, por isso mesmo, mais constrangedor: ele está casado. A consequência é uma tensão que corrói por dentro, porque cada passo em direção a Miriam exige um passo contra alguém, e Barney nunca foi bom em pagar essa conta olhando no rosto.
Boogie, o detetive e o cerco da acusação
Boogie deixa de ser apenas amigo e passa a ser risco. A amizade dos dois é feita de excesso e cumplicidade, uma licença informal para viver mal e rir disso. Quando esse pacto encosta no território do casamento, racha. Barney enxerga oportunidade onde deveria enxergar limite; depois tenta resgatar honra onde já plantou desconfiança. O detetive retorna como pressão constante, cobrando coerência de um homem que ajusta a frase para caber no próprio orgulho, e o mistério em torno de Boogie vira um cerco: Barney precisa decidir o que vira argumento e o que vira silêncio, e cada escolha mexe com a forma como ele é visto, por fora e por dentro.
Izzy como escudo, espelho e aval moral
Izzy, o pai, entra como escudo e espelho. Hoffman faz dele um homem seco e engraçado, capaz de demonstrar afeto sem frase bonita, às vezes só com um charuto e a presença que basta. Izzy intervém quando a autoridade aperta, mas também empurra o filho para uma verdade simples: toda esperteza cobra juros. Barney se agarra a esse pai como aval moral; se Izzy está do lado dele, sente-se autorizado a continuar insistindo. O obstáculo é que essa autorização facilmente vira licença para a grosseria. O efeito aparece em embates verbais que afastam aliados e reforçam a imagem pública do sujeito incapaz de pedir desculpas.
Ele fuma. Ele bebe. Ele fala demais. Perde a paciência rápido. Ama com pressa. Pede perdão tarde. O charuto volta. O hóquei volta. A mesma insistência volta, como um tique que ele confunde com personalidade.
Giamatti, Pike e o desgaste no presente
Giamatti sustenta essa contradição sem pedir absolvição. Barney é desagradável e, ainda assim, compreensível, porque o filme deixa claro o motor: medo de ser descartado, medo de não merecer, medo de ficar sozinho. Pike dá a Miriam uma firmeza paciente que não vira passividade; é escolha, com custo, e isso impede que ela funcione como prêmio narrativo. Ao redor, a história lembra que Barney também trabalha e negocia: ele produz novelas e se apoia nesse cotidiano para justificar ausências, e esse hábito vira obstáculo sempre que o afeto exige presença — ou melhor, sempre que alguém exige dele uma atenção que não se compra nem se empurra com conversa.
Quando a narrativa se aproxima do presente, o que se sente não é resposta fechada, e sim desgaste acumulado. A lembrança começa a falhar justamente onde ele mais precisa dela, e os outros não são obrigados a aceitar sua fala como sentença. O filme ganha força nessa recusa: “A Minha Versão do Amor” não transforma Barney em exemplo, mas deixa um rastro bem concreto de decisões que, uma a uma, foram fechando portas que ele jurava manter abertas.
★★★★★★★★★★




