Discover
Um dos filmes mais subestimados de 2025 está na Netflix — e é o novo suspense de Tyler Perry Divulgação / Netflix

Um dos filmes mais subestimados de 2025 está na Netflix — e é o novo suspense de Tyler Perry

No começo, nada parece fora do lugar, e é justamente isso que dá nervo ao filme. Janiyah tenta atravessar mais um dia com a filha doente, correndo atrás de dinheiro, atendimento, algum tipo de estabilidade que não desabe na primeira ligação. “Até a Última Gota”, dirigido por Tyler Perry, acompanha esse percurso com Taraji P. Henson no papel central, Sherri Shepherd como Nicole e Teyana Taylor como a detetive Raymond. O conflito central é o de uma mãe que, sob pressão financeira e institucional, entra numa situação de reféns no banco e precisa escolher entre se explicar, se proteger e não perder o pouco que ainda a mantém de pé.

Perry monta a escalada por acúmulo. Cada obstáculo entra com a lógica de quem conhece o roteiro da precariedade: uma conta puxa outra, uma negativa vira porta fechada, a tentativa de resolver pelo caminho “certo” devolve humilhação. Janiyah decide insistir mesmo quando o corpo pede recuo, porque há uma criança doente esperando e porque desistir não traz descanso, apenas atraso. O obstáculo, aqui, não tem rosto único; é uma sequência de recusas miúdas que, somadas, ganham cara de inevitável. O efeito se impõe: a história empurra a protagonista para um limite que não explode de uma vez, vai gastando.

A ida ao banco nasce desse gasto. Janiyah tenta transformar um cheque em tempo, em remédio, em comida, em aluguel, em qualquer coisa que pareça futuro. A decisão é simples, prática. O obstáculo é o atrito entre regra e urgência, entre o que pode ser feito e o que deveria ser feito. Quando a situação degringola e o banco vira cenário de crise, o filme muda de temperatura sem trocar de assunto: continua sendo uma mulher tentando resolver um problema básico, só que agora cada gesto é lido como ameaça. O efeito é a suspensão do cotidiano, como se a vida inteira ficasse presa num espaço público de vidro e balcões.

O cerco se arma rápido. Do lado de fora, a reação institucional pede controle, perímetro, comando, e isso encurta as possibilidades de Janiyah. Do lado de dentro, a mesma pressão cria uma espécie de família provisória entre desconhecidos, gente que precisa decidir se grita, corre, negocia, obedece. Nicole, a funcionária do banco, cai numa posição ingrata: acolher pode soar como conivência; endurecer, como crueldade. Ela decide não transformar Janiyah num monstro, e essa escolha muda o tom do espaço. O obstáculo é o medo. O efeito é uma negociação construída mais por frase curta do que por heroísmo.

A detetive Raymond entra como ponte, não como espetáculo. Ela decide ouvir antes de avançar, e o filme trata essa escuta como ação, com custo e risco. Há uma disputa por narrativa acontecendo o tempo todo: a versão que a polícia precisa para agir, a versão que o banco precisa para se proteger, a versão que a mulher precisa para sobreviver. Perry usa esse atrito para mostrar como a autoridade costuma pedir “calma” com uma mão e preparar a força com a outra. O obstáculo é um relógio invisível de crise pública, com paciência limitada e margem de erro mínima. O efeito é que cada resposta de Janiyah passa a ser medida como sentença.

O filme funciona melhor quando se mantém preso a essa lógica de causa e efeito, sem correr para atalhos emocionais. O problema é que Perry, às vezes, tem pressa de garantir que o espectador compreenda o tamanho da injustiça, e essa pressa pode deixar certas viradas com cara de engrenagem, como se o mundo estivesse alinhado demais para esmagar uma pessoa. Ainda assim, a ideia central se sustenta porque o motor não é coincidência; é desgaste: decisões tomadas com pouco descanso, pouco dinheiro, pouca margem. O obstáculo é a fadiga. O efeito é um suspense que não depende de mistério, depende de insistência.

Taraji P. Henson transforma esse desgaste em matéria física. Ela não interpreta só desespero; interpreta tentativa de compostura. A voz falha, o sorriso vem fora de hora, a explicação alonga demais, a respiração encurta entre uma frase e outra. Janiyah decide falar quando seria mais seguro calar, e cala quando seria mais útil falar, porque não domina o jogo das perguntas. O obstáculo é a linguagem sob pressão, que desmonta. O efeito é que o filme não precisa exagerar na ação para manter atenção: basta observar como o corpo dela tenta permanecer funcional enquanto tudo ao redor a empurra para o colapso.

Sherri Shepherd trabalha no sentido inverso: firmeza cotidiana, uma presença que parece treinada para acalmar fila, cliente irritado, colega cansado. Nicole decide agir como pessoa antes de agir como regra, e isso a coloca num ponto de risco, porque empatia pode ser lida como fraqueza. Teyana Taylor, por sua vez, sustenta a autoridade sem virar caricatura de dureza. Raymond decide negociar, mas precisa manter o controle do espaço para não perder o comando do lado de fora. O obstáculo delas é a leitura pública do que fazem. O efeito é um trio em que cada gesto muda o clima de uma sala inteira.

Há um trabalho de encenação que transforma o banco em mapa de ansiedade. A movimentação curta, as distâncias medidas, a sensação de que qualquer passo pode ser lido como provocação. A montagem organiza essa pressão alternando a vida presa lá dentro com o aparato que cresce lá fora, e isso reforça uma ideia incômoda: quanto mais gente chega para “resolver”, menos simples fica a solução. Janiyah insiste na própria versão, mesmo quando percebe que essa versão já não tem força diante do protocolo. O obstáculo é o procedimento, frio e rápido. O efeito é uma espiral em que a palavra vira ferramenta e, no mesmo gesto, armadilha.

O que fica de “Até a Última Gota” é a rapidez com que um problema privado, pequeno para as instituições e imenso para quem vive, vira espetáculo de crise. Perry insiste em mostrar que a ruptura não começa no grito: começa no balcão, no cheque, na resposta negada, no olhar de “não é comigo”. E, quando o cerco se fecha, o filme se agarra ao concreto: um documento, uma assinatura, um pedido repetido, uma pausa longa demais, a sensação de que o mundo inteiro está ouvindo.

Filme: Até a Última Gota
Diretor: Tyler Perry
Ano: 2025
Gênero: Drama/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★