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Está na Netflix: o faroeste brutal que deu o Oscar a Leonardo DiCaprio Divulgação / Twentieth Century Fox

Está na Netflix: o faroeste brutal que deu o Oscar a Leonardo DiCaprio

No oeste americano do início da década de 1820, homens que vivem de peles arriscam a própria vida em rotas incertas e confiança curta. “O Regresso”, dirigido por Alejandro González Iñárritu, acompanha Hugh Glass, interpretado por Leonardo DiCaprio, depois de ele sofrer um ataque de urso e ser abandonado à morte por John Fitzgerald (Tom Hardy) durante uma expedição de caçadores. Domhnall Gleeson surge entre os que tentam tocar o grupo adiante, e o conflito central se impõe sem rodeios: ferido, quase sem recursos, Glass precisa sobreviver e vencer a distância até reencontrar Fitzgerald e cobrar o que lhe foi arrancado.

A primeira grande escolha do filme nasce de um cálculo frio. Carregar um homem gravemente ferido pede tempo, comida, braços; e, ali, tempo tem o preço do sangue. A expedição decide seguir, e Fitzgerald força a decisão com insistência, embalando-a como prudência. O obstáculo é concreto, a mata pune a lentidão, o caminho drena energia. A consequência vem na hora: ao largar Glass, o grupo transforma necessidade em álibi, e a história passa a medir o custo desse álibi em passos que se afastam.

Fitzgerald ainda rouba os pertences de quem deixa para trás, gesto que muda a escala do dano. Já não é só desistir de um ferido; é tirar proveito da desistência. A motivação mistura medo com interesse, e o filme mostra como essa mistura pode virar regra quando não existe autoridade por perto. Para Glass, o roubo vira obstáculo extra: reduz proteção, reduz ferramentas e fixa um objetivo que não permite repouso. O caminho começa mais pobre. O ressentimento, mais agudo.

Sobreviver como tarefa e relógio invisível

Iñárritu trata a sobrevivência como uma lista áspera de tarefas, sem glamour. Glass decide se erguer mesmo quando mal consegue, e essa escolha puxa outra atrás: achar abrigo, buscar água, evitar perigos, escolher onde pisar. O obstáculo muda o tempo inteiro, ora é o terreno, ora é a fome, ora é a exaustão, e cada mudança exige ajuste imediato. Quando o filme se detém nesses detalhes, ele coloca a vingança no lugar certo, no esforço de continuar, não em frase pronta. O corpo é a prova, e o filme não deixa que isso seja esquecido.

Há um relógio invisível marcando a perseguição. Quanto mais Glass demora, mais Fitzgerald pode se afastar, se proteger, recontar o que aconteceu. Por outro lado, acelerar aumenta a chance de morrer antes de chegar a qualquer encontro. O filme segura essa tensão com firmeza: a pressa também é armadilha, porque correr pode reabrir feridas, e parar pode selar o destino. O tempo, ali, não premia coragem. Ele só empilha perdas.

Tom Hardy faz de Fitzgerald um homem de fala rápida e moral elástica, alguém que age primeiro e explica depois. A motivação é sobreviver, sim, mas também é controlar o entorno, não responder a ninguém. O obstáculo que ele impõe é duplo: físico, porque vira um alvo difícil de alcançar; moral, porque tenta enterrar o fato sob justificativas. Cada vez que reafirma a própria escolha, o filme lembra que violência também pode ser administração do medo, arma na mão, olhar de quem já decidiu.

Paisagem, repetição e a ideia de mito

A fotografia de Emmanuel Lubezki, ligada ao uso intenso de luz natural, transforma a paisagem em pressão contínua. O espaço é amplo, branco, frio, e isso muda a medida de qualquer gesto humano. Uma caminhada vira travessia. Uma pausa vira risco. Uma figura ao longe vira ameaça. O obstáculo não é apenas quem Glass persegue; é tudo o que o cerca. A consequência aparece na respiração curta, no corpo encolhido, na decisão de seguir mesmo quando o chão parece negar apoio. A câmera aceita a distância que a paisagem impõe, com o céu baixo dominando o quadro.

Em alguns trechos, a narrativa se concentra em necessidades que se encadeiam sem descanso. Frio. Fome. Dor. Passo. Queda. Levantar. Silêncio. Medo. Caminho. A repetição não serve para enfeitar sofrimento; serve para mostrar como a vontade se constrói no mínimo. O obstáculo é a continuidade em si, e o efeito é uma obstinação que não se explica: se enxerga. Um homem com pouco ar insiste em caminhar.

Inspirado no romance de Michael Punke e na história associada a Hugh Glass, o filme flerta com a ideia de mito, mas não deixa que ela apague a sujeira do trajeto. Glass segue movido por lembrança e perda, ou melhor, por uma fidelidade teimosa a algo que foi quebrado e não volta ao lugar. A motivação permanece simples e, por isso mesmo, custa caro ao corpo. O obstáculo principal não é um enigma: é o mundo ao redor e o homem adiante. A consequência é uma história que exige coerência da dor até o último metro.

À medida que o acerto de contas se desenha, “O Regresso” mantém os pés no chão que vinha cobrando desde o início. O que pesa não é uma frase que explique tudo, mas o desgaste acumulado, escolha após escolha, até que não reste muita margem para recuar. Fitzgerald segue preso ao próprio interesse e à própria covardia, incapaz de transformar o que fez em algo aceitável sem confessar o cálculo. Glass, por sua vez, não encontra descanso enquanto a ferida tiver nome. Entre os dois, a fronteira continua indiferente, céu baixo, ar branco no frio.

Filme: O Regresso
Diretor: Alejandro González Iñárritu
Ano: 2015
Gênero: Aventura/Faroeste
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★