“Brooklyn — Sem Pai Nem Mãe”, dirigido e estrelado por Edward Norton, usa uma investigação criminal para compor um retrato social em escala urbana. Norton vive Lionel Essrog, detetive particular com síndrome de Tourette, empurrado a esclarecer o assassinato de Frank Minna, seu chefe e amigo, interpretado por Bruce Willis. A partir desse disparo inicial, o filme se arma como um neo-noir em que a lógica do mistério anda junto de uma reflexão sobre poder e invisibilidade.
A Nova Iorque de 1957 não entra como enfeite de época. Norton desloca a ação do romance original — situado nos anos 1990 — para um período de grandes reformas urbanas, conduzidas por figuras públicas de autoridade quase incontestável. A escolha muda o peso do enredo: enquanto Lionel persegue a verdade sobre a morte de Minna, a própria cidade passa por uma transformação guiada por interesses que tratam seus habitantes como peças substituíveis.
Moses Randolph, personagem de Alec Baldwin, é a face mais nítida desse poder. Inspirado em Robert Moses, o urbanista associado a projetos de infraestrutura e a deslocamentos forçados, Randolph encarna uma ideia de progresso construída com exclusão. Lionel observa tudo da borda — um homem marcado por uma condição neurológica que o isola — e reconhece, nas demolições e nos silêncios de Randolph, o mesmo padrão que o cerca: um mundo disposto a apagar o que não quer compreender.
O filme ganha corpo quando Lionel encontra Laura Rose, interpretada por Gugu Mbatha-Raw, filha de um ativista negro ligado a movimentos contra o despejo de comunidades inteiras. Ela funciona como força de resistência e, ao mesmo tempo, como possibilidade de empatia para o protagonista, sem virar idealização fácil. Nas conversas entre os dois, o drama particular de Lionel se aproxima do conflito coletivo, e a investigação passa a valer por mais do que o simples desvendamento de um crime.
Norton opta por um ritmo deliberado, alternando quietudes e explosões verbais que dão a medida da mente do protagonista. A síndrome de Tourette não aparece como detalhe decorativo: é filmada como chave de percepção. Lionel fala demais porque pensa rápido demais — e pensa rápido demais porque vive tentando se conter. Cada interrupção, cada palavra fora de lugar, repetida ou insistida, expõe uma leitura acelerada do mundo. Esse barulho constante acaba fazendo dele, paradoxalmente, o observador ideal de um sistema que vive de disfarces.
Na imagem, “Brooklyn — Sem Pai Nem Mãe” presta uma homenagem contida ao noir. O diretor de fotografia Dick Pope trabalha sombras pesadas e luzes de neon com precisão quase geométrica. Há sempre um ar de confinamento: janelas, becos, corredores e clubes de jazz parecem mais estreitos do que deveriam, como se a cidade comprimisse quem tenta atravessá-la sem autorização. O enquadramento reforça a sensação de cerco — motor do gênero e espelho do próprio Lionel, preso entre lucidez e vertigem.
A trilha de Daniel Pemberton, marcada por solos de trompete e por um jazz que evita o pastiche, sustenta o clima de desajuste e solidão. A música não se oferece como legenda do que está em cena; ela se mistura ao som urbano, como se trânsito e passos tivessem o mesmo peso de um tema composto. Dessa fusão nasce uma paisagem sonora que acompanha, aos poucos, a percepção de que a investigação de Lionel não trata só de Minna, mas de um esquema de poder mais amplo, difuso, difícil de nomear.
Bruce Willis, mesmo com pouco tempo em tela, dá a Minna a ambiguidade necessária para que a morte reverbere. Ele é protetor e também manipulador; alguém que acolheu o jovem Lionel e, ao mesmo tempo, o prendeu a uma lealdade que custa caro. Essa relação continua apenas na memória, em fragmentos, e daí vem o núcleo afetivo do filme — o motivo que impede Lionel de recuar. O roteiro, nesse ponto, se afasta do procedural comum: investigar vira luto, e também uma tentativa de autonomia.
Norton, que assina o roteiro, equilibra nostalgia e consciência histórica. A Nova Iorque que ele filma é bela e cruel, um lugar onde o futuro costuma ser uma promessa reservada a quem pode pagar. Entre arranha-céus e escombros, a arquitetura vira metáfora concreta: tudo o que se levanta parece pedir a demolição de algo anterior. Lionel se move como quem tenta salvar o que sobra — da cidade e de si — antes que a pressa engula o resto.
Gugu Mbatha-Raw oferece um contraponto decisivo à inquietação de Norton. Enquanto Lionel derrama palavras, Laura escolhe silêncio e gesto. Ela escuta, observa, entende a violência sem precisar descrevê-la em discurso. É por meio dela que o filme encontra um equilíbrio emocional raro, abrindo espaço para que o tema da exclusão social apareça sem proclamações. Em cenas discretas, o olhar entre os dois carrega mais densidade política do que qualquer frase sobre justiça.
O desfecho não se apoia em reviravoltas, e sim na noção de que certas verdades não libertam; elas apenas mostram o preço de persegui-las. Norton encerra o filme de acordo com a melancolia que o conduz desde o começo — sem alarde, com firmeza — e com a intuição de que o noir não depende tanto de apontar culpados quanto de medir o tamanho da corrupção que um corpo solitário consegue aguentar. A cidade segue, indiferente. Lionel aprende a caminhar sem pedir desculpas por existir.
★★★★★★★★★★




