Existe um bombom de marca famosa cujo recheio é uma suculenta gororoba chocolática, de lamber os beiços. Lançaram outro dia uma versão gigante dele.
Achei que finalmente tinham entendido o consumidor: colheradas, excessos, alguma generosidade para o café da tarde. Comprei.
Foi uma decepção. A casca era grande, sim. Mas, por dentro, havia apenas o velho silêncio das promessas infladas. Fiquei ali, bombom oco em uma mão, cara de ludibriado refletindo na colher empunhada pela outra.
Diante de mim, a folha em branco à espera desta crônica parecia concordar: fim de ano também tem suas pequenas tristezas. Sem querer, me lembrei do Soča.
O Soča é um rio que já nasce com um acento que não é acento — uma espécie de chapéu torto, amassado, que assusta quem veio do português.
Mas que cor, meu Deus do céuzinho!
A gente olha aquele verde-azul, uma coisa de vidro frio. E entende por que há lugares que obrigam o ser humano a parar, contemplativo, um instante.
Invertido, o circunflexo vira genuflexão.
(Meu amigo P., quando esteve aqui, disse: “Eu achava que vocês eram malucos de morarem nessa roça do leste europeu. Agora entendo”.)
No colégio, li certa vez um poema que descrevia a amada como dona de olhos glaucos. Passei por cima: devia ser outra invenção do poeta louco. Anos depois, diante doSoča, entendi essa cor. O poeta não havia inventado. OSoča é de um azul que tropeçou no verde e resolveu ficar assim mesmo, sem pedir licença.
Pois bem. Minha grande decepção deste ano, digo isso com certa vergonha, não foi o bombom vazio nem o Palmeiras desastrado que deixou a desejar, tampouco as finanças sambando fora do compasso. Foi a foz doSoča.
Planejávamos uma viagem ao norte da Itália, dessas em que a gente só quer descansar um pouco, provar vinhos, fazer nada em outras glebas. Alguém comentou: no caminho fica a foz do rio, logo ali, cruzando a fronteira.
Topei na hora. Mas em vez de procurar fotos para alinhar a expectativa, deixei tudo por conta da imaginação. Sou fraquinho diante da fantasia.
Comecei a vislumbrar um espetáculo: oSoča chegando devagar, despejando sua tinta rara no Adriático. O mar aceitando aquela cor como quem recebe um presente antigo de algum deus mitológico. Concebi lendas. Talvez o Caribe fosse assim porque o tingimento doSoča ia longe? Será que as Maldivas herdaram as glaucas gotas eslovenas também? Quiçá o mundo todo, sete ou oito mares mais, tudo que é água reflete um pouco os filetes azul-esverdeados que prateiam desde oSoča?
Água pequena, teimosa. Linda.
Quanto menos eu via imagens reais, quando menos eu googlava qualquer informação, mais a foz crescia dentro de mim. Virou quase um cinema interno, uma história pronta. Pintaria em forma de crônica, por certo. Talvez se tornasse um romance fantástico — e o livro de capa glauca estamparia vitrinas de livrarias aqui e alhures.
Mas outubro chegou. E, com ele, a realidade.
Estava nublado. O rio vinha quieto, sem brilho. Parecia cansado antes de tocar o mar. Nada de monumental encontro das águas, nada de cor invadindo outra cor. Apenas um rio comum beijando de leve, sem erotismo nem sensualidade, uma entrada de água salobra. E pronto. E nada mais.
Fiquei parado ali, como quem devolve à natureza a fantasia que dela emprestou. E compreendi que a gente, às vezes, despeja no mundo uma cor que só existe dentro da cabeça.
OSoča, coitado, não tem culpa. É só um rio.
Mas é bonito, é bonito.


