No sertão, a vida obedece a códigos próprios, e qualquer desvio chega como aviso. Em “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Bárbara Colen, Sônia Braga e Udo Kier ocupam posições afastadas no mesmo tabuleiro: de um lado, moradores que tentam sepultar seus mortos e salvar o cotidiano; do outro, uma ameaça que se aproxima sem alarde. O conflito central se impõe quando o povoado some dos mapas e uma sequência de assassinatos força a comunidade a descobrir como reagir a um inimigo desconhecido e implacável.
A história ganha calor logo após a morte de Carmelita, a matriarca que alcança 94 anos e arrasta para o centro da cidade um ritual de despedida. Teresa retorna para o funeral e reencontra um lugar que parece o mesmo, mas já não é, porque o luto também rearruma posições. Voltar, por afeto e dever, vira contato com um país “daqui a alguns anos” em que decisões distantes pesam no interior. O obstáculo é essa distância, sempre. O efeito: uma cidade que precisa primeiro se amparar em si, antes de pedir socorro.
O desaparecimento dos mapas e a exposição
Quando Bacurau desaparece dos mapas, a ameaça se desenha sem precisar exibir armas. O que era geografia vira disputa. Sem registro, o lugar perde acesso, perde proteção, perde testemunhas. Os moradores percebem o sumiço e tentam recompor a prova da própria existência, mas o resultado imediato é a exposição: se ninguém localiza Bacurau, ninguém responde por Bacurau. O apagamento abre um ponto cego sob medida para quem quer agir sem ser visto.
Os assassinatos, descritos como inexplicáveis, desmontam a crença de que tudo se resolve com um recado às autoridades. A comunidade entra num circuito de urgência: entender o que ocorre, medir o risco, escolher um caminho. Toda escolha cobra. Esconder protege por instantes, mas entrega a iniciativa; fugir pede estrada e tempo; enfrentar exige coordenação e aceita a perda como possibilidade real. Entre cautela e reação, se instala um relógio interno que não conta minutos, e sim sinais, ausências, o medo que vai ficando.
A lógica do cerco e o faroeste em ação
A certa altura, o filme deixa nítida a lógica do cerco. Um grupo armado chega, associado ao personagem de Udo Kier, e a violência deixa de ser rumor para virar prática insistente. O inimigo é estranho para a cidade, mas conhece com precisão o próprio objetivo: transformar gente em alvo e empurrar o povoado para fora do mundo. A consequência vem rápido. Bacurau precisa decidir se aceita virar nota de rodapé ou se se torna, ela mesma, uma força ativa. O faroeste entra como língua de posse e confronto, ou melhor, como modo de falar de fronteira e permanência numa terra em que a fronteira é, no fundo, o direito de ficar.
A resposta do povoado não cabe num herói solitário. Há um coletivo que discute, pondera, divide tarefas, erra, corrige, sempre com a urgência de quem sabe que hesitar custa vidas. A presença de Sônia Braga dá densidade a esse chão humano, porque a resistência não aparece como gesto elegante: aparece como necessidade. Quando a cidade puxa para perto outras figuras, como o personagem de Silvero Pereira, a história amplia a rede de alianças forjadas na hora, atravessadas por desconfianças internas que não evaporam só porque existe um inimigo externo.
O espaço filmado, o mapa vivido
Mendonça Filho e Dornelles filmam Bacurau como lugar de estratégia, e não como cartão-postal. A impressão é que cada rua tem função, que toda entrada e saída altera o risco, que a distância pesa. Esse cuidado transforma o espaço numa prova: quem conhece o terreno ganha vantagem, mas terreno nenhum resolve tudo quando o ataque é calculado para permanecer invisível aos olhos de fora. A trama insiste no contraste entre o “mapa” digital, que apaga, e o mapa vivido, feito de memória e prática, que não aceita sumir.
Curto. Direto. A cidade some. A cidade percebe. A cidade conta seus mortos. A cidade escolhe. O inimigo insiste. A cidade reage. E o mapa, teimoso, segue tentando negar o que está diante dele.
Reconhecido com o Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2019, “Bacurau” recusa a ideia de que a violência no sertão seja paisagem. A mistura de ficção científica e faroeste coloca em cena uma pergunta concreta: o que acontece quando um lugar é tratado como descartável? A cada passo, a narrativa obriga o espectador a acompanhar escolhas e consequências, até que o desaparecimento do mapa pareça menos um mistério e mais um projeto. Ao insistir na permanência, o filme recoloca a cidade na tela com nome, peso e ameaça.
★★★★★★★★★★




