Um detetive excêntrico, mas sofisticado, avança por corredores sombrios como quem decifra uma partitura, atento a cada gesto. Cada indício leva a deduções perfeitas, e ele sabe que nesse jogo todos mentem (e alguns mentem muito). Seu olhar clínico captura detalhes que vistas destreinadas ignoram. Esse homem perspicaz põe uma lupa sobre os reais desejos por trás de reputações imaculadas, e esse é o caminho para chegar a assassinos insuspeitos, capazes de violências as mais bárbaras se contrariados. Em “Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out”, Rian Johnson continua a pagar tributo a Agatha Christie (1890-1976) — de um modo bastante original, que se diga —, sem prejuízo dos trechos cômicos que viram um tempero bem dosado para uma narrativa saborosa. Aludindo a uma canção dos Beatles, o nome da franquia tornou-se sinônimo de monstruosidades escondidas sob as camadas aparentemente translúcidas das relações humanas, hábeis em filtrar toda a luz que lhes atravesse e vertê-la numa força maldita. A Dama do Crime ter-lhe-ia orgulho.
O alvo de Johnson em “Vivo ou Morto” é a relação algo turbulenta entre fé e lógica, personificada num sacerdote de gênio mercurial, cheio de falhas, humano. Romântico, idealista, o reverendo Jud Dupenticy chega à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, uma obscura paróquia no subúrbio de Nova York, depois de espancar um diácono. Aos poucos, o roteiro do diretor esclarece que Jud foi um pugilista habilidoso, obrigado a abandonar os ringues por ter matado um rival durante uma luta. Essa nuvem de desconfiança estaciona sobre a cabeça do jovem padre e sua presença é tida como um fardo, sensação que o monsenhor Jefferson Wicks faz questão de reforçar.
Wicks manipula os sentimentos de seus fiéis com pregações inflamadas sobre vergonha e culpa e assim conserva sempre aceso o fogo da segregação e do ódio, e a assembleia vai se esvaziando. Numa das cenas de humor meio nonsense, ele se confessa com Jud e admite que tem cometido o pecado do onanismo seis vezes por semana, recebe sua penitência, mas não se corrige e, o pior, continua a julgar-se superior aos demais. Quando é assassinado, logo depois da homilia, ninguém fica exatamente surpreso, ainda que seja impossível não lamentar o escândalo. O homicídio do monsenhor Wicks é investigado, naturalmente, por Benoït Blanc, que, ao contrário, duvida que o reverendo Jud seja o assassino, e a partir desse ponto Daniel Craig toma à frente da história, ressaltando o cinismo do investigador e dividindo o palco com Josh O’Connor e Josh Brolin em flashbacks bons o suficiente para segurar o espectador até o derradeiro dos 144 minutos. Um elenco de apoio com Glenn Close, Jeremy Renner e Jeffrey Wright, também ajuda muito.
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