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Rebel Wilson e Anne Hathaway na comédia da Netflix que salva seu fim de semana sem esforço Divulgação / Metro-Goldwyn-Mayer

Rebel Wilson e Anne Hathaway na comédia da Netflix que salva seu fim de semana sem esforço

A Riviera Francesa costuma ser filmada como promessa de descanso, mas aqui ela funciona como vitrine de vulnerabilidades. “As Trapaceiras”, dirigido por Chris Addison, reúne Anne Hathaway, Rebel Wilson e Alex Sharp em torno de um conflito direto: Josephine Chesterfield, golpista sofisticada, e Penny Rust, trambiqueira de rua, travam uma disputa para enganar um bilionário da tecnologia, ao mesmo tempo em que tentam sabotar os movimentos uma da outra sem expor o golpe.

Penny chega ao território de Josephine com a convicção de quem já sobreviveu a lugares piores. Ela não pede licença e, por isso mesmo, vira problema. A motivação é clara: onde há dinheiro fácil, há oportunidade. O obstáculo também é claro: golpes baseados em aparência dependem de discrição, e a presença de uma desconhecida fora do tom ameaça o equilíbrio que Josephine construiu com paciência, reputação e uma rede de hábitos.

A resposta de Josephine é menos explosiva do que calculada. Ela escolhe não esmagar Penny imediatamente, porque expulsar alguém pode chamar atenção, e atenção é o que não se compra nem com charme. Em vez disso, oferece uma convivência que parece treinamento, mas tem cara de contenção. Há ali uma promessa de ensinar, e uma intenção de manter a novata sob controle, como se domesticar fosse uma forma elegante de eliminar concorrência.

Só que Penny não se comporta como aprendiz obediente. Ela aprende rápido, mas deturpa regras, força atalhos, testa limites. O que seria um período de adaptação vira provocação permanente. A cada correção, uma faísca. A cada elogio, um desafio. O filme encontra sua energia principal nesse atrito: duas mulheres que dominam a mentira, mas não aceitam a mentira do outro como superior.

A disputa, então, muda de forma e ganha contorno esportivo. Surge uma aposta: um alvo comum, um prazo implícito, uma consequência sem espaço para negociação. Para Josephine, a aposta é um instrumento de limpeza. Para Penny, um atalho para ocupar o lugar que a outra trata como propriedade. O obstáculo deixa de ser apenas convencer alguém rico a abrir a carteira. Passa a ser vencer correndo, enquanto desarma armadilhas e cria novas, com o risco extra de que a outra trapaceira esteja sempre um passo atrás, ou um passo à frente.

O bilionário jovem da tecnologia é a peça perfeita para essa mecânica. Ele reúne dinheiro, ingenuidade e carência suficiente para ser cercado por histórias fabricadas com capricho. Josephine oferece ao alvo uma narrativa de estabilidade e prestígio, construída com gestos precisos, vocabulário polido e uma promessa de mundo organizado. Penny, por outro lado, opera no impulso: entra pela lateral, usa vulnerabilidade como argumento e transforma espontaneidade em espetáculo. O filme se diverte quando uma invade a encenação da outra e força improviso imediato, às vezes com sucesso, às vezes com vergonha.

Chris Addison conduz isso com ritmo leve, sustentado mais pelo choque de energia das atrizes do que por suspense de crime. A direção não tenta fazer do golpe um labirinto intrincado; ela prefere o prazer do confronto, o efeito de uma frase atravessada na hora errada, a interrupção que desmonta uma pose cuidadosamente ensaiada. A comédia nasce da diferença de tempo interno: Josephine quer controlar cada segundo, Penny atropela os segundos como se tivesse pressa de não pensar.

Há também uma ambição evidente de conversa com tradição. “As Trapaceiras” é refilmagem de “Os Safados” (1988), de Frank Oz, e mantém a estrutura de rivalidade em cenário luxuoso, agora reposicionada para duas protagonistas. Essa troca não muda apenas o gênero das personagens; ela altera o jogo de poder. Ser subestimada pode virar ferramenta. Mas subestimar a outra, mesmo por um instante, vira risco real, porque as duas dominam o mesmo repertório: teatro social, cálculo afetivo e a habilidade de ler o desejo alheio.

A força do filme, quando ele acerta, está em tratar o golpe como trabalho. Não trabalho nobre, nem trabalho romântico. Trabalho pragmático, com regras próprias, com falhas e com improvisos inevitáveis. O luxo ao redor não serve como convite ao turismo; ele serve como contraste: uma superfície impecável por cima de uma operação suja, feita de pequenos desvios, encenações e promessas que não pretendem durar além do necessário.

Com 94 minutos, o longa opta por velocidade e acessibilidade. Isso ajuda a manter a leveza e impede que a rivalidade se esgote por repetição. Em contrapartida, limita o espaço para aprofundar consequências morais ou emocionais. O que se vê é a engrenagem do jogo social funcionando em alta rotação, e o filme parece satisfeito em ficar ali, acompanhando quem entra na sala, quem controla a conversa, quem sai com vantagem.

As atuações são o motor principal. Hathaway constrói Josephine como disciplina exibida: tudo nela parece calculado para nunca perder o centro, como se postura fosse armadura. Wilson faz de Penny uma presença insistente, um corpo que ocupa espaço e não pede desculpas por existir ali. A combinação funciona porque nenhuma das duas tenta desaparecer para que a outra brilhe; o brilho é a guerra. Alex Sharp, como o alvo do golpe, serve de contrapeso ao duelo, oferecendo o tipo de ingenuidade que permite que as duas disputem o controle da história.

O filme foi recebido com resistência por parte da crítica, e é possível entender por quê: sua ambição é mais de entretenimento do que de reinvenção. Ainda assim, ele tem um mérito específico. Ele observa, com ironia, como a mentira depende de detalhes banais, um olhar sustentado, uma palavra escolhida, um gesto que comunica superioridade ou fragilidade. No mundo que o filme retrata, não vence quem engana melhor. Vence quem faz a própria versão parecer a única possível, por tempo suficiente para o dinheiro mudar de mãos.

Filme: As Trapaceiras
Diretor: Chris Addison
Ano: 2019
Gênero: Comédia/Crime
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★