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O pesadelo expressionista de Robert Eggers: Dafoe e Pattinson em um duelo psicológico no Prime Video Divulgação / Universal Pictures

O pesadelo expressionista de Robert Eggers: Dafoe e Pattinson em um duelo psicológico no Prime Video

Não é difícil perceber quando um filme pede silêncio, não aquele silêncio protocolar de sala de cinema, mas o silêncio íntimo, quase ritualístico, que antecede experiências que mexem mais com o corpo do que com a razão. Este é o caso de “The Lighthouse”: um filme que não tolera distrações, que rejeita a lógica do consumo casual e prefere espectadores dispostos a se trancar com ele num recanto escuro. Há algo de quase litúrgico nisso, como quem decide apagar o mundo lá fora para acompanhar dois homens que, ironicamente, passam o filme inteiro tentando não enlouquecer justamente por estarem isolados.

O charme perverso desse confinamento está na estética rigorosa que Robert Eggers escolhe para contar a história. Não é simplesmente um filme em preto e branco: é um mergulho em um universo que só funciona porque qualquer outro recurso seria um equívoco. Uma única cor destruiria o pacto entre espectador e narrativa, rompendo a atmosfera densa que nasce do contraste entre luz e sombra. As imagens noturnas, atravessadas por clarões abruptos e pela textura quase mineral da fotografia, parecem pensadas para aprisionar a respiração. A figura da sereia, tão surpreendente quanto desconfortável, ganha força justamente pela ausência de cor, como se a falta de tonalidade empurrasse essa criatura para um limiar entre sonho, desejo e pesadelo.

Dupla em Erosão

A dinâmica entre os personagens, vividos por Willem Dafoe e Robert Pattinson, segue um ritmo hipnótico e profundamente desconcertante. Não há heróis, vilões ou sequer uma bússola moral que permita ao espectador repousar. São apenas dois homens exaustos, cercados de vento, álcool e suspeitas, uma combinação que, em qualquer latitude, seria combustível suficiente para dissolver a sanidade. A cada diálogo truncado e cada explosão de rancor, fica evidente que o filme não pretende oferecer estrutura dramática tradicional. Ele prefere embaralhar certezas, borrando limites entre paranoia, mito e degradação mental. Assistir a isso enquanto se tenta responder mensagens no celular seria tão absurdo quanto exibir “O Sétimo Selo” no intervalo de um jogo de futebol.

Há, no entanto, uma lógica precisa na maneira como o filme aperta o espectador contra a parede. A proporção da tela, estreita como um velho diário marítimo, impede qualquer fuga. O som, feito de ondas que nunca descansam, gaivotas que parecem zombar de tudo e um farol que lateja como um animal preso, cria uma sensação de desorientação contínua. Até o modo como os personagens falam, com sotaques quase marítimos demais para serem reais, força uma aproximação incômoda. Não é simples acompanhar cada palavra, e talvez essa seja justamente a intenção: fazer o público aproximar o rosto da tela como quem tenta decifrar um código antigo.

O Peso da Experiência

Apesar disso, é impossível ignorar que o filme exige muito, talvez demais, do espectador. O desconforto é deliberado, e a duração prolongada transforma essa experiência em algo próximo de um experimento emocional. Não estamos falando de uma narrativa que busca agradar, mas de um labirinto psicológico no qual cada curva é uma provocação. Há quem saia da sessão com a sensação de ter sido exposto a uma ventania interminável. E, de fato, pode ser mais fácil admirar o rigor do filme do que desejá-lo novamente.

Willem Dafoe, porém, alcança um patamar que poucos atores conseguem. Seu Thomas Wake não é apenas um velho lobo do mar: é quase uma divindade menor, intempestiva e decadente, que fala como se estivesse invocando maldições de um livro perdido. Ele mastiga cada frase com tamanho furor que parece, às vezes, prestes a incendiar o próprio farol só pelo prazer crítico de ver se o mundo treme junto. Pattinson responde de forma igualmente intensa, criando uma dupla que parece existir num tempo paralelo, onde a razão já não é referência confiável.

Um Delírio Sustentado

“The Lighthouse” não se encaixa em categorias confortáveis, tampouco deseja isso. Não é terror puro, nem drama psicológico clássico, nem alegoria mitológica tradicional. É uma história que prefere se dissolver em camadas de ambiguidade, ironia e vertigem. E é justamente essa recusa ao óbvio que faz o filme permanecer conosco, não como uma memória nítida, mas como um eco que se arrasta depois que a tela escurece, lembrando discretamente que a fronteira entre lucidez e delírio talvez seja menos estável do que gostaríamos de acreditar.

Filme: The Lighthouse
Diretor: Robert Eggers
Ano: 2019
Gênero: Drama/Fantasia/Suspense/Terror
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★