Discover
Com registros inéditos e testemunhos exclusivos, 50 Cent leva à Netflix o dossiê mais completo já montado sobre os crimes atribuídos a Diddy Divulgação / Netflix

Com registros inéditos e testemunhos exclusivos, 50 Cent leva à Netflix o dossiê mais completo já montado sobre os crimes atribuídos a Diddy

Recentemente envolvido em uma série de escândalos e acusações que se acumulam há anos, o rapper e CEO da Bad Boy, Sean Combs, conhecido como P Diddy, Puff Daddy ou simplesmente Puffy, enfrenta um cenário jurídico que continua se expandindo. Algumas reportagens internacionais mencionam um grande volume de ações civis e investigações em curso, 70 processos é um número estimado para o que ainda falta ir à julgamento. O fato é que Combs permanece no centro de uma disputa jurídica extensa, que envolve desde acusações de abuso até litígios financeiros complexos. As absolvições mais recentes, que decepcionaram parte do público e da crítica, não encerram o quadro, mas evidenciam um sistema judicial cuja flexibilidade com figuras poderosas é mais sintoma do que causa.

O documentário produzido por 50 Cent, notório desafeto de Combs, e dirigido por Alexandra Stapleton articula esse sintoma ao exibir dois jurados cujos depoimentos revelam incompreensão ou relativização da gravidade das evidências apresentadas contra o réu. A narrativa construída por Stapleton evita suavizar a postura desses jurados e mostra como suas percepções se alinham a uma estrutura social marcada por condescendência com homens influentes acusados de abusos.

Leitura sociopolítica

50 Cent apresenta os dois jurados como peças centrais para compreender o que identifica como um organismo social viciado: machista, desinformado, funcional à hegemonia e permissivo com figuras que acumulam poder, dinheiro e influência. Essa lente conduz toda a série documental, composta por quatro episódios que funcionam como uma autópsia moral de décadas de excessos, crimes alegados e abusos associados à figura de Combs. A montagem nunca perde a intenção de demonstrar Combs como a personificação contemporânea de um padrão histórico: indivíduos protegidos por sistemas inteiros, capazes de praticar atos brutais sob a blindagem oferecida pelo próprio prestígio.

É impossível não perceber ao longo dos episódios que compõem a série documental que Combs é uma reencarnação perversa de um tipo de mal que já visitou a Terra em diversas outras situações onde as coisas quase fugiram totalmente do controle, como em ditaduras e genocídios. Ele é a garantia de que pessoas cruéis, quando adquirem poder, são capazes das piores atrocidades jamais imaginadas por gente comum, simplesmente porque são amparados por um sistema que os protege. A tese de que Combs teria prosperado graças a essa blindagem institucional é a espinha dorsal do documentário.

Do ponto de vista jornalístico, a série carrega um risco ético evidente: 50 Cent e Combs têm uma longa história de antagonismo público. Isso naturalmente levanta questionamentos sobre a imparcialidade da narrativa e sobre até que ponto a seleção de imagens, falas e depoimentos não sofre algum grau de viés. Ainda assim, como obra audiovisual, a produção exibe consistência estrutural, qualidade técnica elevada e uma articulação de materiais de arquivo que cria uma narrativa fluida e impactante.

Arquivos pessoais, bastidores e fontes próximas

Entre os elementos mais comentados da série estão os arquivos pessoais de Combs utilizados por 50 Cent. São filmagens íntimas de décadas atrás, bem como registros captados pouco antes de sua prisão. Como o material chegou às mãos da produção não foi detalhado, e 50 Cent, em entrevistas, declara que “um jornalista não revela suas fontes”. A questão das fontes não identificadas permanece aberta, mas o conjunto de imagens é utilizado com habilidade para sustentar as hipóteses centrais da narrativa.

O documentário também apresenta entrevistas com pessoas que conviveram de perto com Combs ao longo de sua carreira. Entre elas está Kirk Burrowes, ex-parceiro de negócios e primeiro CEO da Bad Boy Entertainment. Burrowes esteve profundamente envolvido na estruturação inicial da gravadora e acompanhou de perto a ascensão de Combs nos anos 1990. Seu depoimento detalha tensões internas, disputas de poder e episódios controversos envolvendo o rapper.

Outros entrevistados relembram episódios de violência, manipulação financeira, disputas territoriais, acusações ligadas a mortes de grandes artistas do hip-hop, como Tupac Shakur e The Notorious B.I.G., além de relatos envolvendo abuso de substâncias e condutas abusivas. Mesmo diante de tantas alegações, Combs conseguiu, até agora, evitar condenações grandes, o que reforça a leitura central da série: ele teria prosperado graças à proteção oferecida por sua posição no entretenimento e por relações de poder consolidadas ao longo das décadas.

Impacto emocional

“Sean Combs: Acerto de Contas“ termina como uma experiência quase indigesta. A cada depoimento, cresce a sensação de injustiça e de impotência, especialmente ao ouvir pessoas que relatam prejuízos financeiros massivos, relações sexuais não consentidas e sob efeito de dopping, agressões físicas e traumas psicológicos associados ao convívio com Combs. A série argumenta que seu talento principal nunca foi artístico no sentido estrito, mas estratégico: saber se apropriar da criatividade alheia, manipular ambientes, extrair vantagens, controlar carreiras e se manter no topo eliminando potenciais ameaças.

Para muitos artistas da Bad Boy, segundo a narrativa apresentada, os pagamentos nunca vinham na proporção do lucro, e qualquer nome que ousasse brilhar mais que Combs era afastado, silenciado ou esmagado por mecanismos internos. A montagem da série reforça essa tese ao conectar ascensões abruptas e quedas dramáticas, evocando as mortes de Pac e Biggie como pontos simbólicos de um sistema que engole seus próprios talentos.

A catarse de tudo isso é o tom provocador assumido por 50 Cent ao expor seu rival com certo humor vingativo. Ele sabe que a disputa histórica entre ambos cria uma camada adicional de tensão, e essa energia permeia a campanha promocional da série. O resultado é um retrato duro, controverso e inevitavelmente parcial, mas que, dentro da proposta, alcança consistência narrativa e impacto dramático.

Filme: Sean Combs: Acerto de Contas
Diretor: Alexandra Stapleton
Ano: 2025
Gênero: Biografia/Crime/Documentário/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.