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Um corredor, uma denúncia e Julia Roberts: o soco silencioso de “Depois da Caçada” no Prime Video Divulgação / Amazon MGM Studios

Um corredor, uma denúncia e Julia Roberts: o soco silencioso de “Depois da Caçada” no Prime Video

A protagonista é uma professora veterana de filosofia, instalada no topo de um departamento prestigioso, ladeada por colegas que simulam camaradagem enquanto disputam verbas, salas e reconhecimento. Em certo ponto, “Depois da Caçada” faz essa posição aparentemente inabalável tremer: dirigido por Luca Guadagnino, com Julia Roberts, Ayo Edebiri e Andrew Garfield, o filme acompanha o instante em que uma aluna brilhante acusa um professor carismático de abuso e obriga a mentora a escolher entre a protegida e o sistema que sustentou toda a sua carreira.

A partir dessa encruzilhada, a personagem de Roberts tenta manter tudo sob controle, primeiro por convicção, depois por puro instinto de sobrevivência. Intermedia conversas, revisa e-mails, aconselha colegas a esperar, vende prudência enquanto empurra qualquer posicionamento claro para depois. Cada movimento desloca a denúncia para comissões, advogados, memorandos e, a cada etapa, o departamento se fecha um pouco mais sobre si mesmo. A aluna de Edebiri aceita o jogo institucional, mas percebe que sua fala vale menos que o medo do escândalo no corredor.

O professor vivido por Garfield reage às acusações com uma mistura bem calculada de indignação e charme. Convoca encontros discretos, pede que a amiga o ajude a “corrigir a narrativa”, ameaça com ações judiciais e, em certos momentos, parece acreditar sinceramente na própria versão. O filme o enquadra oscilando entre vítima e agressor em potencial, enquanto Guadagnino prefere registrar rostos de muito perto, onde um meio sorriso, um olhar que escapa, pesa mais que qualquer frase cuidadosamente preparada.

Burocracia acadêmica, performances e tensão silenciosa

Em meio a esses movimentos, o roteiro de Nora Garrett prefere o terreno menos confortável, o dos detalhes burocráticos. Obriga o espectador a acompanhar prazos, formulários, redações sucessivas de comunicados, reuniões em que cada verbo vira disputa concreta. Em alguns momentos, o filme escorrega para explicações demais, sobretudo quando segredos antigos da protagonista aparecem em flashbacks diretos, mas a escolha de encarar o escândalo como disputa permanente de interpretação, e não charada resolvida, mantém o drama em fogo lento convincente.

Ninguém corre. Ninguém grita. O perigo está na ata. No e-mail protocolado. Na reunião gravada. Na porta fechada. O filme aposta que esse tipo de tensão quase documental ainda pode segurar um público acostumado a revelações barulhentas, e em parte consegue porque as interpretações seguram o peso das conversas. Roberts trabalha com respirações, pausas, pequenas correções de frase, enquanto Edebiri constrói uma figura que combina fragilidade juvenil e cálculo profissional, incômoda justamente por parecer tão reconhecível.

Já a direção de Guadagnino alterna um formalismo elegante com lampejos de inquietação visual. Alguns planos vigiam corredores vazios, salas de aula desertas, gabinetes em que a luz do computador projeta manchas azuladas no rosto dos professores. Em outros momentos, a câmera se torna quase intrusa, aproxima-se demais de uma mão que treme antes de assinar um documento ou de um sorriso forçado diante de alunos atentos. A música de Trent Reznor e Atticus Ross vibra discreta, às vezes excessiva, ou melhor, grande demais para aquelas salas apertadas.

Zonas cinzentas, comparações e disputa por narrativa

Em determinado ponto, “Depois da Caçada” se aproxima de filmes como “Dúvida” e “Tár” ao apostar em zonas cinzentas em que nenhuma versão oferece consolo completo. O interesse maior está em observar quem ganha poder ao narrar, quem o perde, quem tenta reescrever o passado em conversas privadas. Decisões aparentemente pedagógicas, como mudar uma bibliografia ou sugerir disciplina nova, escondem manobras de autoproteção e transformam a sala de aula em continuação discreta do inquérito, sempre a poucos passos de outro corredor silencioso.

Há, claro, momentos mais frágeis. O terceiro ato alonga discussões, repete justificativas e reduz o impacto de uma revelação importante sobre o passado da protagonista. Ainda assim, a insistência em reuniões, relatórios e pequenos acordos reforça a sensação de cerco: ninguém sai ileso porque ninguém consegue se afastar do prédio, do corredor, da rotina. Vista de fora, a universidade parece bucólica; vista por dentro, o filme insiste num ar viciado que contamina cada gesto aparentemente banal.

Fragilidades, recepção em sala e decisão final

A sessão reunia estudantes, advogados e alguns rostos claramente vindos do próprio mundo acadêmico. Em certos diálogos mais agressivos, ouviam-se risos nervosos, comentários sussurrados, um ou outro suspiro irritado quando o personagem de Garfield tentava se desculpar pela linguagem “mal interpretada”. Uma espectadora levantou no meio de uma cena decisiva e voltou minutos depois, ajeitando o casaco; esse gesto, repetido em outras fileiras, combinava com o filme, que insiste na dificuldade de permanecer na sala enquanto tudo desmorona devagar.

O ponto de maior risco chega quando a protagonista é chamada a falar oficialmente, diante de colegas e advogados, não apenas sobre o caso atual, mas sobre uma acusação antiga que ajudou a enterrar em nome da harmonia institucional. Cada palavra pode comprometer carreira, amizade, aluna e a figura pública construída ao longo de décadas. A decisão que ela toma ali rearranja lealdades de maneira seca, pouco catártica, e talvez por isso o filme permaneça. “Depois da Caçada” encerra-se sem absolver ninguém, deixando o espectador diante de um corredor comprido, uma porta fechada e um silêncio que não promete resposta alguma.

Filme: Depois da Caçad
Diretor: Luca Guadagnino
Ano: 2025
Gênero: Crime/Drama/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★