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Atores banidos do Oscar, salvos pelo streaming

Atores banidos do Oscar, salvos pelo streaming

Na sala de estar, o menu da plataforma exibe uma sequência de miniaturas: filmes premiados, diretores consagrados, séries antigas. Entre elas, “The Cosby Show” aparece ao lado de comédias recentes, disponível por assinatura ou compra digital, apesar da condenação e posterior libertação de Bill Cosby em casos de agressão sexual. A poucos cliques, obras de Roman Polanski constam em catálogos de serviços como Criterion Channel e Mubi, enquanto o diretor continua impedido de entrar nos Estados Unidos por uma acusação de abuso sexual que antecede a própria existência do streaming.

Expulsões e punições no Oscar

No outro extremo da cadeia, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas tenta, há quase vinte anos, projetar uma imagem de maior rigor. Em 2004, o ator Carmine Caridi tornou-se o primeiro membro expulso da instituição, depois de admitir que repassava fitas VHS com cópias de filmes enviados para votação — versões rastreadas em uma investigação sobre pirataria. Em 2017, já sob o impacto do movimento #MeToo, o produtor Harvey Weinstein foi excluído por “conduta contrária aos padrões de conduta da Academia”, após dezenas de relatos de assédio e violência sexual virem a público.

No ano seguinte, 2018, a instituição decidiu também expulsar Bill Cosby, após sua condenação criminal, e Roman Polanski, condenado desde 1977 por relação sexual ilícita com uma menor de idade — decisão que muitos consideraram tardia, dentro e fora da Academia. Em 2021, o diretor de fotografia Adam Kimmel foi removido depois da divulgação de documentos judiciais que o descrevem como agressor sexual reincidente. A lista de expulsos segue curta para o tamanho da Academia: além de Caridi e Weinstein, Cosby, Polanski e Kimmel perderam o direito de votar e de frequentar eventos, mas nenhum teve seu Oscar formalmente retirado.

WIll Smith
Will Smith: banido por 10 anos dos eventos do Oscar após a agressão no palco

Will Smith ocupa um lugar à parte nessa história. Após agredir o comediante Chris Rock no palco da cerimônia de 2022, o ator renunciou à própria membresia e recebeu da Academia um banimento de dez anos de qualquer evento oficial. Nada disso, porém, impediu a circulação dos seus filmes. “Emancipation – Uma História de Liberdade”, drama de época produzido pela Apple, foi lançado no streaming ainda em 2022; “Bad Boys: Ride or Die” (“Bad Boys: Até o Fim” no Brasil), quarto filme da franquia de ação, chegou aos cinemas em 2024 e tornou-se um dos sucessos comerciais do ano, com presença assegurada em pacotes de TV e plataformas digitais.

O caso de Richard Gere ilustra um tipo de exílio mais silencioso. Em 1993, ao apresentar o Oscar de direção de arte, o ator abandonou o texto preparado e criticou a repressão chinesa no Tibete. A intervenção, hoje disponível em vídeos online, rendeu a Gere um veto informal: por cerca de duas décadas ele deixou de ser convidado para entregar prêmios, embora continuasse atuando em produções elogiadas, como “Chicago”, vencedor do Oscar de melhor filme em 2003. Em entrevistas recentes, Gere associa a redução de papéis em grandes produções à combinação entre sua militância pró-Tibete e o peso econômico do mercado chinês no cinema global.

Streaming como refúgio para obras contestadas

Enquanto isso, o catálogo das plataformas segue outra lógica. O acervo da Criterion mantém títulos emblemáticos de Polanski; serviços de assinatura preservam séries com Cosby; filmes ligados a Weinstein reaparecem sob o guarda-chuva de empresas que adquiriram os ativos da Miramax e da Weinstein Company. A expulsão muda o status social do profissional, mas não altera, automaticamente, os direitos de exploração das obras, regidos por contratos antigos ou por acordos firmados com novos detentores de catálogo.

O desenho resultante é irregular. De um lado, comunicados oficiais anunciam expulsões, códigos de conduta reforçados, comissões de ética. De outro, o acesso aos trabalhos desses mesmos nomes permanece praticamente intacto para quem paga a mensalidade de um serviço de streaming. Dependendo da plataforma, o usuário pode maratonar episódios de “The Cosby Show” ou rever “O pianista” sem encontrar qualquer aviso contextual, nota editorial ou indicação de que exista controvérsia em torno dos créditos exibidos.

Executivos de streaming, quando se manifestam, costumam alegar razões contratuais, históricas ou de preservação para manter esses títulos. Em alguns casos, como o de Cosby, canais e plataformas retiraram séries do ar no auge das denúncias e as recolocaram depois, discretamente, em serviços de nicho ou pacotes específicos. A lógica predominante é pragmática: enquanto houver público disposto a assistir e o risco reputacional puder ser administrado, o conteúdo continua contado como ativo relevante.

Debate ético, reação do público e mercado

Entre pesquisadores de mídia e grupos de defesa de vítimas, as soluções propostas divergem. Há quem defenda a retirada integral de obras associadas a casos graves, como forma de impedir que continuem a gerar receita para envolvidos em abusos. Outros sugerem caminhos intermediários: manter o acesso, mas incluir avisos claros sobre o histórico dos artistas e destinar parte da receita a fundos de apoio a sobreviventes. Na prática, as grandes plataformas agem caso a caso, reagindo a picos de indignação, sem um protocolo público estável.

O comportamento da audiência também não é uniforme. Após o escândalo Weinstein, alguns filmes ligados ao produtor registraram queda de bilheteria e de exibições, enquanto outros ganharam interesse renovado, seja por curiosidade, seja por reavaliação crítica. No caso de Will Smith, “Emancipation – Uma História de Liberdade” teve impacto discreto, mas “Bad Boys: Ride or Die” (“Bad Boys: Até o Fim”) indicou que uma parcela expressiva do público está disposta a separar o episódio da agressão no Oscar da experiência de vê-lo em ação no cinema ou no streaming.

Para a Academia, o endurecimento das sanções funciona como resposta a acusações de conivência histórica com abusos. Para plataformas e canais, a pressão ética divide espaço com métricas de engajamento, contratos de licenciamento e estratégias de diferenciação em um mercado saturado. De um lado, um organismo privado tenta indicar quem não deve mais fazer parte de um círculo de prestígio; de outro, sistemas globais de distribuição continuam exibindo, promovendo e monetizando o trabalho desses mesmos nomes.

A cada novo escândalo, repete-se um roteiro conhecido: nota de repúdio, suspensão de convites, declarações de ruptura. Meses depois, o rosto envolvido volta a surgir em thumbnails de catálogo, boxes comemorativos, listas de “clássicos” em serviços de assinatura. A distância entre o gesto simbólico do banimento e a persistência das obras no streaming ajuda a entender por que, em 2025, a discussão sobre responsabilidade no consumo cultural permanece presa a esse jogo de cena — com o Oscar apertando a porta da frente enquanto as plataformas mantêm o arquivo aberto para quem quiser entrar.