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Tilly Norwood, a atriz de IA que não existe e já ameaça o trabalho de atores reais e o futuro do cinema

Tilly Norwood, a atriz de IA que não existe e já ameaça o trabalho de atores reais e o futuro do cinema

No auditório envidraçado do Zurich Summit, braço de indústria do Zurich Film Festival, o telão mostra uma jovem inglesa de casaco, café na mão, sorrindo como se tivesse acabado de sair de um teste de elenco. Ela fala com naturalidade, pisca, faz piada, move o corpo com a leve afetação de quem sabe estar sendo observado. Só então o público de produtores, agentes e executivos é informado de que aquela aspirante a estrela não existe. Chama-se Tilly Norwood e foi criada inteiramente por inteligência artificial.

A apresentação é conduzida por Eline Van der Velden, atriz e produtora que fundou a Particle6, empresa britânica de conteúdo, e sua divisão de IA, a Xicoia. Ela diz ter levado meses até chegar ao “design” definitivo de Tilly, depois de testar milhares de combinações de rosto, voz, humor, biografia. A personagem tem perfil calculado: “girl next door” britânica, mas com potencial de circulação global, pensada para funcionar tanto em dramas intimistas quanto em blockbusters de ação. A Xicoia sustenta que, com Tilly, um filme poderia reduzir em até 90% os custos ligados a elenco.

Antes da estreia em Zurique, Tilly já circulava de forma discreta nas redes sociais. A conta de Instagram, aberta em maio de 2025, exibia ensaios fotográficos, selfies em cafés londrinos, fragmentos de cenas de ação e campanhas de moda. Nada ali era real no sentido habitual: imagens e vídeos foram gerados por uma combinação de modelos de IA, costurados por uma equipe de cerca de quinze pessoas entre programadores, artistas de efeitos visuais e roteiristas. O primeiro “trabalho” oficial, um esquete cômico chamado “AI Commissioner”, escrito com ajuda do ChatGPT, acumulou centenas de milhares de visualizações no YouTube e críticas duras na imprensa especializada em cultura digital.

O que transformou Tilly em problema não foi o esquete, mas a promessa, repetida em Zurique, de que agências de talentos já disputariam o direito de representá-la. A informação, publicada por sites de indústria como “Deadline” e repercutida por “The Hollywood Reporter” e “Variety”, acendeu o alerta em sindicatos. A SAG-AFTRA, entidade que representa atores norte-americanos, divulgou nota classificando Tilly como ameaça direta aos meios de subsistência de intérpretes humanos e levantando suspeitas sobre o treinamento dos modelos usados na criação da personagem, possivelmente alimentados por performances protegidas por direitos autorais.

A reação de atores conhecidos veio em sequência. Emily Blunt chamou a ideia de “realmente assustadora” e pediu que agências recusassem o experimento. Whoopi Goldberg criticou o que vê como “preguiça criativa” de produtores interessados em figuras virtuais que não envelhecem, não adoecem, não pedem reajuste nem residual de streaming. Jameela Jamil usou um painel em Lisboa para dizer que o projeto “desumaniza a atuação”. Do outro lado, Van der Velden insiste que Tilly é um “trabalho artístico”, comparável a animação ou marionetes, e que a intenção seria ampliar possibilidades, não substituir ninguém.

À disputa ética somou-se uma disputa de imagem. A atriz escocesa Briony Monroe afirmou enxergar em Tilly uma cópia de sua fisionomia e maneirismos; uma musicista independente declarou, em vídeo viral, que a personagem é seu “sósia digital”. Ambas dizem consultar sindicatos e advogados sobre possível violação de direitos de personalidade. Para além desses casos específicos, críticos lembram que modelos generativos são treinados em bases massivas com rostos, vozes e corpos de milhões de pessoas, muitas delas jamais consultadas. Em um mercado que já vive de repetir arquétipos, a ideia de uma atriz composta de pedaços de outras acende um incômodo particular.

Do ponto de vista econômico, a conta também é torta. Textos no “Financial Times” e na “Bloomberg” observam que criar e manter personagens como Tilly custa caro, exige infraestrutura de computação robusta, equipe permanente e licenças de software especializadas. Ainda assim, executivos enxergam vantagem em um ponto sensível: uma vez estabilizado o pipeline, a personagem não pede cachê maior pelo sucesso, não reivindica pontos de bilheteria, não entra em litígio por crédito. Para produções de médio orçamento que hoje lutam por espaço entre franquias e minisséries, a tentação de trocar elencos caros por um rosto sintético e “maleável” é concreta.

Há quem insira o debate em uma linha histórica mais longa. A chegada do som, a adoção da cor, a explosão da computação gráfica, o rejuvenescimento digital de atores veteranos — tudo provocou resistência e, em maior ou menor grau, acabou absorvido pelo sistema. No caso de Tilly, porém, críticos como Peter Bradshaw, do “The Guardian”, argumentam que a diferença é qualitativa: não se trata de uma ferramenta que modifica o registro de um intérprete humano, e sim de uma proposta explícita de esvaziar o trabalho interpretativo, substituindo-o por uma sequência de decisões automatizadas sobre rosto, corpo, entonação. Daí termos como “anti-arte” e “psicose coletiva em torno da eficiência”.

Pesquisadores em tecnologia preferem a cautela ao pânico. Um especialista em mídia da Universidade do Sul da Califórnia, Yves Bergquist, lembrou em entrevistas que não há, até agora, músico ou ator inteiramente artificial capaz de sustentar, sozinho, uma carreira longa e financeiramente sólida. A adesão do público, diz ele, permanece ligada à identificação com histórias de vida, vulnerabilidades e contradições de pessoas reais — algo que Tilly, por mais refinada que seja, ainda simula de fora para dentro. Para muitos analistas, a personagem funciona menos como produto acabado e mais como balão de ensaio: uma maneira de testar limites jurídicos, sindicais e afetivos.

No Brasil, onde o streaming consolidou de vez um mercado de séries e longas pensados em escala global, o caso é acompanhado com atenção. Produtores ouvidos em off admitem curiosidade diante da promessa de redução de custos, mas lembram que o valor de exportação de obras brasileiras ainda depende, em grande medida, de rostos reconhecíveis, de trajetórias que conectam televisão aberta, teatro, cinema e plataformas. Sindicatos de atores, por sua vez, já incluem cláusulas sobre uso de IA em contratos recentes e acompanham de perto as negociações internacionais, especialmente depois das greves de roteiristas e intérpretes nos Estados Unidos em 2023 e 2024. Tilly entra nesse radar como sintoma de um cenário em que o risco de ser “substituível” ganha contornos tecnológicos.

Enquanto isso, a própria personagem continua a ser alimentada com novos posts, novos testes de atuação, novas promessas de projetos híbridos avaliados em dezenas de milhões de dólares. Cada vídeo publicado gera comentários furiosos de atores, curiosidade de fãs de tecnologia e, inevitavelmente, engajamento — um dado que nenhuma planilha ignora. Em uma das imagens mais recentes, Tilly aparece em um cenário vermelho de tapete oficial, como se estivesse prestes a entrar em uma première. Fora do enquadramento, permanece a fila de atores tentando entender se aquele sorriso artificial é só uma moda passageira ou um aviso de que, daqui para frente, o lugar deles na imagem principal nunca esteve tão em disputa.