Um ator bem-sucedido atravessa uma crise de identidade e vê ruir seu mundo perfeito. Suas respostas calculadas tornam-se um labirinto de mentiras em que nem mesmo ele acredita mais, enquanto o respeitável público consagra um impostor. Antes motivo de orgulho, a fama é agora um castigo, a prisão que o condena a remoer lembranças e especular como poderia teria sido sua vida se houvesse tomado essa ou aquela atitude. Essas são as impressões que o público vai levantando acerca de Jay Kelly, o personagem-título da ótima comédia dramática de Noah Baumbach, um exímio observador da vida como ela é, para semideuses e simples mortais. Uma das grifes do novíssimo cinema americano inteligente, Baumbach persevera na arte de expor as neuroses, as falsas alegrias, os medos, os traumas e as (poucas) situações de júbilo sincero de quem parece flutuar alguns palmos acima do chão, mas que também vê-se obrigada a encarar problemas que nem todo o dinheiro ou glamour do mundo são capazes de sanar. Ao lado da corroteirista Emily Mortimer, o diretor despeja sobre o protagonista uma montanha de culpa e remorso, que ele vai escalando com sacrifício, ainda que o inquestionável charme desse anti-herói disfarce seu tormento.
Entre o set de filmagem, Beverly Hills e a notícia que muda tudo
Jay roda mais um de seus premiados filmes num estúdio altamente tecnológico, mas o que pesa mesmo é seu talento e o inabalável profissionalismo. Ele grava a morte de seu personagem, a cena fica boa, mas ele quer tentar de novo, e acaba dissuadido, um traço de que não livrou-se de sua condição de ser humano, sujeito ao cansaço e a angústias outras. Ele se despede da equipe, vai para o camarim e reclama com o empresário, Ron, do cheesecake que sempre o espera, um absurdo, já que ele detesta cheesecake. Baumbach aposta em minudências aparentemente tolas, como insistir um bocadinho mais nessa quizila gastronômica — Ron devolve que o doce só é servido porque Jay dissera uma vez que o exigia depois das gravações — a fim de que restem dúvidas quanto à personalidade difícil e quase mercurial desse homem que não demora a experimentar do próprio veneno. Jay volta para seu palacete em Beverly Hills, beberica o drinque trazido pelo segurança, mas seu sossego acaba quando a filha, Daisy, comunica que está indo passar o verão no norte da Itália, para onde ele também deverá ir, a fim de receber uma homenagem num festival modesto, mas resta subentendido que ela quer ir sem o pai. Como tudo que está ruim pode ficar pior, Ron chega com a notícia de que morreu Peter Schneider, o diretor que deu-lhe sua grande oportunidade. A partir desse ponto, “Jay Kelly” decola.
O teste esquecido, o amigo ferido e o passado que volta
No velório de Peter, Jay reencontra Timothy, um amigo que participara com ele do teste para um filme do cineasta. Esse é o gancho de que Baumbach vale-se para iluminar certos ângulos do passado de Jay, num flashback nada menos que perturbador, malgrado nunca carregue nas tintas de um drama artificioso. Na saída da cerimônia fúnebre, os dois saem para beber, e como a verdade está no vinho, Timothy confessa que nunca conseguiu superar o que acontecera quatro décadas atrás naquele teste, e ninguém pode tirar-lhe a razão. Eles trocam uns socos, Jay leva um olho roxo para casa, mas como a situação de Timothy é bem mais grave, ele pode ser condenado a pagar uma indenização de cem milhões de dólares, outro sinal de que talvez seja mesmo a hora de aposentar-se.
George Clooney, fama e o preço da máscara em “Jay Kelly”
É impossível não apreender “Jay Kelly” por lentes metalinguísticas. Involuntariamente, George Clooney preenche Jay com notas autobiográficas, afinal, ele sabe bem o que é não poder andar em público sem esperar ser vítima de uma situação vexatória ou de um escândalo (e o flagra, por evidente, arruinar sua reputação), ou “só” lidar com o assédio sem trégua — se gosta ou não, são outros quinhentos, mas não deve gostar, quem gostaria? Quanto a Jay Kelly, ele gosta do que faz ou gosta de ser famoso? Ele é sincero ou está sempre atuando, como sempre? Quem é Jay Kelly, na verdade?
Clooney, Adam Sandler e Billy Crudup elevam “Jay Kelly” à condição de uma obra-prima sobre o que é relevante ou é descartável nesses tempos de celebridade custe o que custar. Jay, que sabe não é exemplo para ninguém, continua sendo modelo para muitos e quanto mais ele tenta arrancar sua máscara, mais falso parece. Um talento invejável.
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