Crianças orbitam num campo de emoções selvagens, a oscilar entre euforia, brandura e medo, numa fome inconsciente de poder captar o mundo que as rodeia. É aí, nesse terreno instável, que florescem as tantas descobertas e, claro, as cicatrizes, os obstáculos, as autossabotagens, as superações. Houve um tempo em que Stephen King era fascinado por esses seres humanos em pleno despertar para a existência. Em 2020, o Rei do Terror publicou “If It Bleeds”, coletânea de histórias curtas que inclui “Rato”; “Se Sangra”, que dá nome à publicação em inglês; “A Vida de Chuck” e “O Telefone do Sr. Harrigan”, descrevendo a relação de um garoto de oito ou nove anos com o mundo a sua volta, um lugar que se revela dia a dia mais inóspito. Trinta e quatro anos antes, King, o mais famoso autor da comercialíssima literatura dos séculos 20 e 21, havia lançado “It – A Coisa” (1986), alegoria sobre uma entidade diabólica que alimenta-se dos medos de suas vítimas, crianças de uma cidadezinha do Maine, na Nova Inglaterra. Os sete amigos aterrorizados por Pennywise, um palhaço aparentemente inofensivo — ainda que grotesco, como palhaços em geral são —, agradaram de tal forma que deram origem a uma das mais bem-sucedidas sequências de produções cinematográficas, o que se comprova em “It: Capítulo Dois”. O argentino Andy Muschietti sabe como esticar a corda mantendo apenas a tensão, e obtém resultado ainda melhor do que se vê em “It – A Coisa” (2017), também de sua lavra.
O roteiro de Gary Dauberman repassa o colosso de mais de 1.200 páginas publicado por King em 1986, quadra especialmente profícua para o terror — e, sobretudo, o terror infantojuvenil — na tela grande, com “Brinquedo Assassino” (1988), dirigido por Tom Holland, e “A Hora do Pesadelo” (1984), a cargo de Wes Craven (1939-2015), elaborando soluções visuais surpreendentes para o delírio exegético kinguiano. Dauberman tem iluminações sagazes ao rechear o filme de luzes e, por óbvio, de vermelho, a cor que predomina em Pennywise, que faz sua entrada triunfal depois de um ataque homofóbico em Derry, passados 27 anos do episódio em que ancora-se o enredo. Os membros do autoproclamado Clube dos Perdedores foram embora de sua provinciana cidade natal, restando apenas Mike Hanlon, um sujeito meio paranoico que faz questão de não deixar morrer o pacto de sangue que ele, Ben, Beverly, Bill, Eddie, Richie e Stanley firmaram. Na vida real, eles não teriam mais interesses em comum, mas Muschietti convence quem assiste de que basta que seus olhares voltem a se cruzar para a conexão se restabelecer. Não se pode negar que todos são infelizes, cada qual a sua maneira.
Para quem gosta mesmo de cinema, importa menos o sentido dos massacres pretéritos e futuros em Derry do que as memoráveis atuações do afinado elenco. Cada ator demonstra total domínio do seu personagem, e lances como o do reencontro, num restaurante chinês, têm muito mais importância do que a fantasia viscosa construída sobre pavores da meninice tornados muralhas inexpugnáveis na fase adulta. O Bill de James McAvoy e Jessica Chastain na pele de Beverly condensam boa parte dos monumentais 169 minutos, porém “It: Capítulo Dois” é o esforço de uma legião. Stephen King há de concordar.
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