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Drama de Noah Baumbach com George Clooney provoca riso, incômodo e uma estranha ternura — na Netflix Divulgação / Pascal Pictures

Drama de Noah Baumbach com George Clooney provoca riso, incômodo e uma estranha ternura — na Netflix

A tensão que move “Jay Kelly” se afirma já nos primeiros minutos, quando George Clooney, no papel do ator que dá título ao filme, atravessa um tributo elaborado para celebrá-lo e revela uma instabilidade que não nasce do estrelato, mas da precariedade emocional que ele mesmo construiu. Noah Baumbach estrutura o longa como um percurso de desmonte: Jay é alguém que viveu tempo demais interpretando uma versão vendável de si, a ponto de já não reconhecer a própria biografia. A narrativa acompanha justamente o momento em que essa fachada começa a ruir, expondo contradições, ressentimentos e uma busca tardia por algum tipo de unidade interna.

A figura que catalisa esse processo é Ron, interpretado por Adam Sandler, um agente-oficial-de-tudo que funciona quase como extensão involuntária de Jay. Não é apenas o profissional que gerencia crises, reorganiza agendas ou apaga focos de incêndio; é o sujeito que dedicou anos a sustentar o mito de Jay Kelly enquanto sacrificava silenciosamente a própria vida familiar. O filme deixa claro como esse vínculo se tornou corrosivo: Ron é tão indispensável ao cotidiano do astro quanto invisível às lógicas que o consomem. A presença de Greta Gerwig como a esposa que tenta manter algum senso de normalidade revela o esgotamento de uma estrutura que já não se sustenta, não por falta de afeto, mas porque Ron perdeu a capacidade de separar lealdade de autoanulação.

Baumbach explora esse sentido de desgaste com precisão narrativa. Em paralelo às crises de Jay, surgem personagens que orbitam seu passado e ajudam a iluminar fracassos acumulados. Stacy Keach, como o pai, encarna a origem de um modelo afetivo atravessado por competitividade e ausência. Riley Keough, interpretando a filha adulta que tenta conviver com as lacunas deixadas por ele, introduz uma dimensão mais íntima: sua postura pragmática funciona como contraponto ao narcisismo do protagonista, que parece incapaz de compreender que uma relação não se sustenta apenas com pedidos tardios de aproximação. Em vez de recorrer a sentimentalismos, o roteiro aposta em diálogos secos, nos quais as frustrações jamais se resolvem totalmente, mas deixam marcas evidentes.

Nesse percurso, Ron desponta como o eixo emocional mais sólido do filme. O desgaste provocado pela convivência com Jay atravessa sua expressão corporal, sua maneira de se calar e até seu humor cansado. Sandler encontra um equilíbrio raro entre contenção e dureza, evidenciando a deterioração de alguém que, ao tentar proteger outro homem do colapso, acabou ignorando o próprio. Clooney, por sua vez, interpreta Jay como alguém que flutua entre o desespero e a autopiedade, consciente das consequências de suas escolhas, mas incapaz de enfrentar as próprias falhas sem dramatizar cada passo. Essa combinação transforma a relação entre os dois no núcleo dramático mais potente, especialmente quando o vínculo se desfaz em uma discussão que expõe anos de dependência mútua.

As digressões do filme sobre memória, legado e autopromoção dialogam com referências explícitas ao universo do cinema e à longa tradição de histórias sobre artistas em crise. Baumbach sabe que está lidando com um território já explorado e, em vez de evitar esse fato, transforma-o em parte da reflexão central. Quando Jay se perde em uma floresta durante uma filmagem e corre sem encontrar saída, a metáfora é direta, mas expressa com eficácia a lógica interna do personagem: tentar se reencontrar enquanto insiste em repetir padrões que o afastam do que diz buscar. Da mesma forma, o personagem de Billy Crudup, figura do passado que retorna para confrontá-lo com um episódio esquecido, funciona como lembrete de que o sucesso também se alimenta de esquecimentos convenientes.

O filme avança sem buscar uma restauração plena. Jay tenta reconhecer erros, procura reorganizar memórias e reaproximar-se da filha, mas seu gesto nunca se torna plenamente redentor. Essa escolha é coerente com o que Baumbach constrói: não se trata de propor um arco que devolva ordem ao caos, e sim de examinar o quanto um homem pode enfrentar de si mesmo quando a imagem pública já não funciona como escudo. A pergunta que atravessa a história, até que ponto é possível solicitar um novo começo quando se viveu décadas atuando no modo automático, não encontra solução definitiva, e talvez seja justamente por isso que o filme permanece inquieto. Ao invés de buscar absolvição, “Jay Kelly” se dedica a investigar as fissuras entre o personagem e o homem, consciente de que algumas respostas simplesmente não se deixam domesticar.

Filme: Jay Kelly
Diretor: Noah Baumbach
Ano: 2025
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.