Stanley Kubrick nunca foi tão cruel, tão brilhante e tão necessário quanto nesse filme genial na HBO Max Divulgação / Warner Bros.

Stanley Kubrick nunca foi tão cruel, tão brilhante e tão necessário quanto nesse filme genial na HBO Max

“Nascido Para Matar“ é o título do filme de Stanley Kubrick no Brasil, mas também a escrita do capacete de Joker (Matthew Modine), protagonista do segundo arco do longa-metragem. O título original, escolhido pelo cineasta, “Full Metal Jacket“, simboliza a capa metálica que envolve o projétil do fuzil. Mas não é à toa que Kubrick escolheu esse nome. Há algumas razões primordiais para isso. Em uma das cenas finais do primeiro arco, a que define o restante do filme, o protagonista dessa parte, Pyle (Vincent D’Onofrio), pronuncia antes de atirar contra si mesmo: “Full Metal Jacket“. Essa frase também simboliza o que Kubrick acredita que é feito com os jovens nos treinamentos militares. Eles são encapsulados em uma cobertura metálica. Mas o que isso quer dizer, afinal? Para o cineasta, o verdadeiro eu, a identidade pessoal, o ser humano é oprimido para dentro de uma malha dura, fria, impessoal e industrial. Ele é completamente despersonalizado para se tornar um robô matador.

Há filmes de guerra e filmes anti-guerra. Enquanto produções de Steven Spielberg e outros cineastas, como “O Resgate do Soldado Ryan“, “Sniper Americano“, “O Patriota“ e “Top Gun“, exaltam a guerra e tratam soldados como heróis, outros diretores, como Terrence Malick, Francis Ford Coppola e Stanley Kubrick, criticam e ironizam o conflito e tratam soldados como humanos cuja sanidade está à beira do colapso. O patriotismo de Spielberg nunca me conquistou, e confesso que prefiro a crueza de “Além da Linha Vermelha“ ao resgate de um irmão que perdeu outros três na guerra. “Nascido Para Matar“ não é uma comédia, embora em alguns momentos se pareça com uma. Kubrick, como ninguém, usou um humor seco, afiado e maldoso para falar sobre o tema.

Ele não apenas humaniza os heróis de guerra, mas os transforma em figuras ambíguas, corruptas, confusas, lutando pelo controle de suas mentes. “Nascido Para Matar“ é impactante pela violência brutal, mas também pela forma nada sentimental de expor o horror interno e externo. Pyle tem sua humanidade dissecada no treinamento militar. Vítima de bullying de seu chefe de treinamento da Marinha e pelos colegas, acima do peso, incapaz de concluir suas provas de resistência e sem habilidades motoras para ser um soldado, ele tem sua autoestima destruída e sua persona dissolvida. Ele se transforma em um robô como os outros, mas sua mente não suporta essa nova forma dura e desumanizada.

Joker é testemunha do que acontece com Pyle e vai para a guerra como jornalista, tentando evitar o combate. Ele quer um certo distanciamento. Quer ir como um observador, que anota, testemunha, registra e produz sua própria narrativa da guerra. Enquanto na cabeça o capacete diz “Nascido Para Matar“, no peito há um pin com o símbolo “Paz e Amor“. Sua ambiguidade moral é resultado do que viu no treinamento. Parte dele é contra a matança, mas a outra parte de seu cérebro foi lobotomizada como a de outros jovens militarizados. Seu distanciamento não dura muito depois que ele vai para o Vietnã.

O corte brusco de um arco para o outro dá uma quebra de ritmo no filme, o que foi propositalmente arquitetado por Kubrick. Enquanto o primeiro arco tem uma montagem rígida, coreografada e enquadramentos simétricos, o segundo arco é desordenado, caótico, e a câmera perde sua geometria. Kubrick nos diz que nenhuma regra se aplica em um campo de batalha e que nada em uma guerra pode ser cronometrado, planejado ou previsto, tanto no plano material quanto no filosófico. Na guerra, tudo sai do controle.

É no arco de Joker que o título “Nascido Para Matar“ faz sentido para nós, brasileiros. Joker tenta fugir de sua designação como soldado, acreditando — ou tentando acreditar — que está no controle de suas ações e de sua moralidade. Quando, no fim, tudo desemboca para o horror da guerra e tudo perde o sentido, é possível se manter íntegro? Kubrick nos diz que não, nesta que é uma das maiores obras-primas de todos os tempos do cinema.

Filme: Nascido Para Matar
Diretor: Stanley Kubrick
Ano: 1987
Gênero: Drama/Guerra
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.