O que mais me intriga em “Lisa Frankenstein“ é a tentativa obstinada de parecer inofensivo enquanto tudo ao redor pede o contrário. O filme pulsa com uma energia que suplica por excessos, mas mantém um freio que contraria sua própria natureza. A sensação é a de assistir a uma criatura fascinante, porém domesticada antes da hora. E, paradoxalmente, é justamente nessa contenção que o longa revela sua personalidade mais curiosa: ele funciona como uma carta de amor torta ao imaginário adolescente dos anos 80, só que escrita com a caligrafia de alguém que sabe que certas sombras não combinam com a classificação indicativa.
A história se desenrola em 1989, quando Lisa, interpretada por Kathryn Newton, vive como uma adolescente deslocada o suficiente para transformar devoção mórbida em rotina. Obcecada por um rapaz morto que jamais conheceu, ela visita seu túmulo com a mesma serenidade com que outros estudam para provas. Uma tempestade incomum cai sobre o cemitério e, com sua fúria elétrica, devolve vida ao cadáver interpretado por Cole Sprouse. Ele não fala, mas seu silêncio cria um tipo próprio de elo, uma cumplicidade quase infantil e ao mesmo tempo perversa. A dupla se aproxima à medida que o caos avança, e o enredo envereda por episódios de violência que, mesmo suavizados pela censura, apontam para uma dinâmica que beira o delirante: membros decepados, corpos desaparecendo, pequenas catástrofes domésticas tratadas como extensão natural do cotidiano.
Essa química entre uma jovem que flerta com a amoralidade e um morto-vivo confuso, mas afetuoso, pede um terreno mais ousado. Kathryn Newton entrega uma Lisa que mistura fragilidade e crueldade com uma habilidade rara, como se conseguisse equilibrar humor ácido e inocência rachada. Já Cole Sprouse, preso ao silêncio do personagem, compõe uma presença corpórea expressiva, oscilando entre a curiosidade infantil e uma brutalidade acidental. A interação dos dois cria momentos que poderiam rivalizar com comédias de humor negro clássicas, não fosse a própria narrativa insistir em cortar a festa antes da hora.
Carla Gugino, no papel da madrasta, conduz a subtrama mais saborosa do filme: sua relação tirânica e performática com Lisa abre espaço para um humor tão venenoso que quase redefine o tom do longa. Quando a espiral de tensão entre elas enfim se rompe, o resultado é um episódio de puro deleite. Só que, novamente, a impressão é de que havia espaço para um mergulho mais profundo nessa perversidade doméstica. Cada ideia instigante soa recortada, como se o roteiro, de Diablo Cody, tivesse passado por uma filtragem moral que deixou arestas suficientes para provocar curiosidade, mas limpou o que poderia chocar.
Essas limitações criam contrastes estranhos com tudo o que funciona muito bem. O visual exagerado, o guarda-roupa inspirado em revistas juvenis da época, a estética vibrante que Zelda Williams constrói, tudo isso compõe um universo que parece convidar o espectador a entrar sem pedir permissão. Há uma precisão quase lúdica na forma como o filme brinca com moda, música e breguice oitentista, e o conjunto reforça que o tom deveria ser mais livre, mais insolente. Até as pequenas piadas visuais, como cada estágio de decomposição sendo substituído por traços mais humanos, apontam para um humor que poderia ter sido ainda mais afiado.
Mas o que entrega verdadeira singularidade ao longa é a ausência de pudor em assumir sua sensibilidade romântica, mesmo quando isso flerta com o grotesco. O relacionamento entre Lisa e o rapaz ressuscitado alcança momentos de ternura insólita, como se o filme sugerisse que a sobrevivência emocional nasce justamente das escolhas mais absurdas. O elemento fantástico não serve apenas para provocar risos, mas para tocar numa ferida adolescente que muitas vezes fica escondida: o desejo de encontrar alguém que aceite até as partes que não deveriam ver a luz do dia.
O último ato abraça esse espírito até onde a censura permite. A história parece se preparar para uma explosão final, como se os personagens fossem enfim atravessar a fronteira que tanto insinuaram testar. No entanto, o desfecho prefere seguir um caminho mais controlado, ainda assim suficientemente estranho para deixar um rastro de inquietação. A frase poética que ressoa na cena final funciona como síntese de tudo o que o filme tenta articular: o tempo não corrige nada, apenas reorganiza as feridas para que possamos continuar olhando para elas.
“Lisa Frankenstein“ é a prova de que mesmo uma narrativa contida pode carregar faíscas de irreverência. Não é o filme que libertaria seu potencial máximo, mas é aquele que descobre um charme próprio ao equilibrar humor mórbido, romance disfuncional e nostalgia estilizada. E, ao fim, oferece um gesto inesperado: convida o público a rir do estranho sem pedir desculpas, como se dissesse que a vida, no fundo, também funciona como um breve colapso elétrico capaz de juntar o impossível.
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