Mais de 120 milhões de espectadores nos cinemas mundiais: o filme que é febre global e está no Prime Video Divulgação / Lionsgate

Mais de 120 milhões de espectadores nos cinemas mundiais: o filme que é febre global e está no Prime Video

O arco narrativo de “Jogos Vorazes“ começa com um incômodo difícil de ignorar: a sensação de que um país inteiro aceita como rotina um espetáculo macabro travestido de tradição. Essa banalização do absurdo serve como porta de entrada para a trajetória de Katniss, interpretada por Jennifer Lawrence, que assume para si uma responsabilidade que nenhum adulto de Panem parece disposto a enfrentar. A jovem escolhe ocupar o lugar da irmã, Prim, numa arena em que adolescentes são forçados a eliminar uns aos outros para satisfazer uma elite entediada comandada pelo presidente Snow, vivido por Donald Sutherland. É um gesto de afeto, mas também um anúncio do tipo de contradição moral que sustenta toda a narrativa.

A preparação dos tributos revela um mundo em que estética e violência estão disfarçadas de entretenimento. Effie, interpretada por Elizabeth Banks, guia Katniss e Peeta, vivido por Josh Hutcherson, entre entrevistas, treinamentos e desfiles que transformam competidores em produtos. A presença de Haymitch, interpretado por Woody Harrelson, dá um contraste incômodo: ele conhece o jogo como poucos, mas carrega no olhar uma lucidez mordida pelo álcool, como se cada gole fosse uma tentativa de apagar memórias que o país insiste em transformar em espetáculo anual. Nesse ponto, a história funciona como uma crítica àquilo que poderíamos chamar de uma forma perversa de educação política. Panem disciplina pela crueldade e recompensa pela submissão.

Quando a arena enfim se abre, a narrativa abandona a superfície brilhante da Capital e mergulha em um território de instintos primários. O desenho daquele ambiente não está interessado em criar uma paisagem exuberante; ele se articula como extensão da lógica do próprio jogo. A perseguição constante, a ausência de refúgio, a necessidade de alianças instáveis e o risco calculado são parte de um sistema pensado para maximizar sofrimento e audiência. Katniss se desloca por esse terreno com a competência de quem nunca pôde confiar plenamente em nada além de sua própria resistência. Sua relação com Peeta oscila entre cumplicidade e desconfiança, e Hutcherson interpreta esse paradoxo com a dose exata de vulnerabilidade. O gesto final dos dois, quando propõem desafiar o jogo sem dizer uma palavra, funciona como um golpe delicado contra um regime que acredita ter controle absoluto sobre todas as narrativas.

A condução do filme prefere um olhar mais contido, sem apostar em explosões grandiosas para preencher lacunas emocionais. O que sustenta a tensão é o conjunto de decisões que obrigam os personagens a se expor moralmente. A câmera treme, hesita, quase tropeça, como se não suportasse olhar diretamente para o que está diante dela. Essa escolha gera desconforto para parte do público, mas evita transformar a violência em espetáculo anestesiado. Cinna, interpretado por Lenny Kravitz, surge como respiro breve: seu trabalho com Katniss cria um contraste entre a ostentação exagerada da Capital e uma estética mais humana, quase íntima, que parece pedir ao público algum tipo de empatia.

A discussão inevitável sobre originalidade surge sempre que alguém aponta semelhanças com narrativas anteriores, como “Battle Royale“. A comparação é pertinente, mas reduz a complexidade do filme quando se transforma em acusação automática. Histórias sobre sociedades que sacrificam jovens em nome de uma ordem artificial são tão antigas quanto os mitos mediterrâneos que falavam de deuses exigindo tributos impossíveis. O interesse maior está em como o filme traduz essa estrutura para um mundo governado pela lógica do espetáculo, onde tudo se transforma em conteúdo antes mesmo de se firmar como experiência humana.

É nessa interseção entre competição, política e performance que “Jogos Vorazes“ encontra suas questões mais cortantes. O filme não precisa gritar para afirmar sua crítica; ele usa os silêncios, as hesitações de Katniss, os olhares calculados de Snow e a encenação grotesca da Capital para sugerir que nenhum poder sobrevive sem narrativas que o legitimem. Ao final, o que perdura não é apenas a imagem da jovem desafiando o regime, mas a ideia incômoda de que esse desafio só se tornou possível porque a própria Capital acreditou demais na força do seu próprio espetáculo.

Essa fricção entre controle e imprevisibilidade deixa uma marca persistente. Panem funciona porque seus habitantes foram ensinados a aceitar o absurdo como rotina. Katniss se recusa a seguir esse manual. E talvez seja justamente essa recusa, tão simples quanto impossível de controlar, que transforme a história em algo que continua a incomodar mesmo depois que as luzes se apagam.

Filme: Jogos Vorazes
Diretor: Gary Ross
Ano: 2012
Gênero: Ação/Aventura/Ficção Científica/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★