E o racismo reverso, cambada?

E o racismo reverso, cambada?

Feriado da Consciência Negra. Fui comprar pães e um cara na fila do caixa se dizia indignado. Havia feriados demais no Brasil. Era por essa e por outras que o país não ia para a frente. A economia em frangalhos, se venezuelando a passos largos. A falta de patriotismo dos cidadãos. Por que um feriado só para os negros? E a consciência branca? E a consciência amarela? Era o fim da picada. Só mudando do Brasil mesmo, um paisinho atrasado.

Eu já estava atrasado para o café da manhã. A fila não andava e acabei obrigado a ouvir o desabafo daquele desconhecido que, por sinal, era pardo, como a maioria da população brasileira. Aliás, o que não faltava na padaria era gente preta. Uma preta no caixa. Uma preta puxando um rodo. Outra preta esquentando a barriga na chapa quente. Cansado por ter que ouvir um patriota vociferando de manhã tão cedo, eu mantinha a minha silente cara de paisagem. E os pães moreninhos esfriando dentro do saco de papel. Que saco!

O homem vestia a camisa de um time de futebol bastante popular. Comentava-se que era o time com maior torcida no país. Pelo olhar de constrangimento das pessoas dentro da padaria, o homem se tornava cada vez mais impopular. Um cão caramelo entrou no estabelecimento, pediu comida e foi enxotado pelo sujeito com um chute no ar. Sai! Chute de zagueiro grosso.

Uma senhorinha pediu licença e entrou na fila, à nossa frente. Atendimento prioritário. Mais essa, agora, ele sussurrou. Velhos são aposentados. Por que a pressa? Por que a prioridade no atendimento sendo que tinham todo o tempo do mundo para esperar a sua vez. Precisava mesmo era de fechar o Congresso Nacional. Economizaríamos uma fortuna. Quem fazia leis não fazia ideia do que era a vida real, do corre que a gente tinha que fazer para conseguir o pão nosso de cada dia. Por falar nisso, desprotegidos, os pãezinhos seguiam esfriando dentro da sacola. E o homem falando.

A idosa encarou o sujeito e perguntou se ele sabia quem tinha sido Zumbi dos Palmares. O cara não entendeu a pergunta de primeira, então, ela teve que repetir de forma mais lenta e professoral. Surpreso com a interpelação da mulher, ele disse que os únicos zumbis que ele tinha conhecido na vida eram da série “The Walking Dead” e de um filme antigo chamado “A Volta dos Mortos-Vivos”. Mesmo querendo matar o fanfarrão, a maioria das pessoas riu do comentário chistoso. Já tava todo mundo de saco cheio. Inclusive eu. Com os pães esfriando dentro dele.

Com a paciência típica dos idosos, a boa senhora fez uma rápida explanação sobre a persona histórica de Zumbi dos Palmares. Enquanto ouvia, o sujeito sorria e balançava a cabeça de um lado para o outro, como um joão-bobo, em sinal de insatisfação. De minha parte, eu já estava deveras insatisfeito, pois já não sentia mais o calorzinho gostoso dos pães franceses. Estariam mortos os coitadinhos?

Testando ainda mais a paciência coletiva, o homem quis saber por que ninguém falava sobre o racismo reverso, que era o fenômeno de gente preta repudiar gente branca. Acontecia todo santo dia e ninguém falava nada. Eu disse gente com licença eu preciso pagar a minha conta e ir andando porque os meus pães estão estavam esfriando dentro da sacola.

De cabeça quente, o homem elevou o tom de voz tornando a réplica ainda mais inconveniente. A velhinha percebeu que não valia a pena testar a sua pressão arterial argumentando com ele. Então disse bom dia, meu senhor, passar bem e, claro, não foi correspondida. Ele baixou a cabeça, dobrando o pescoço ainda mais, o suficiente para quase se encostar no meu ombro: Quem gosta de velho é reumatismo, disse.

Por fim, ao chegar a sua vez, ele chamou a moça do caixa pela alcunha de minha filha e reclamou da demora no atendimento, questionando por que não colocavam mais funcionários para atender a clientela na hora do rush, ainda mais num dia de feriado como aquele, num absurdo dia de feriado como aquele. Esse povo não sabe trabalhar. Haja paciência. Um dia ainda me mudo desse país de… Bem, vocês sabem.

O homem saiu da padaria e foi como se tirássemos pedregulhos de dentro dos sapatos. Não demorou muito ouviu-se uma gritaria do lado de fora. Todos acorreram para conferir o que tinha sucedido. Todo mundo já sabia que os caramelos não eram de morder ninguém. Quebrando o protocolo, aguardando à espreita, o nosso caramelo tinha se vingado do faroleiro e agora corria desembestado ladeira abaixo para a alegria geral da nação zumbi.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 60 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.