História emocionante sobre amizade em tempos de crise chega à Netflix após brilhar no TIFF e Cannes Divulgação / Dharma Productions

História emocionante sobre amizade em tempos de crise chega à Netflix após brilhar no TIFF e Cannes

Algo me atingiu logo nos primeiros minutos de “Homebound”: a sensação de que Neeraj Ghaywan decidiu revisitar um país inteiro pela fresta mais estreita possível, aquela em que a intimidade e a falha estrutural se encontram. É curioso como certos filmes nascem silenciosos e, ainda assim, conseguem irradiar um desconforto que não se dissipa. Talvez porque acompanhem personagens que carregam o tipo de esperança fraturada que costuma atravessar fronteiras sociais com mais honestidade do que discursos. Chandan, vivido com discrição e nervo por Vishal Jethwa, e Shoaib, interpretado por Ishaan Khatter com uma gentileza que parece sempre à beira de se romper, formam uma dupla que funciona justamente porque se apoia em cicatrizes distintas, mas complementares. Eles não avançam pela narrativa como heróis improvisados, e sim como rapazes tentando sobreviver ao que o país insiste em impor a cada um deles.

A viagem dos dois durante o lockdown não funciona apenas como pano de fundo. A pandemia se instala como um espelho ampliado das velhas hierarquias indianas: quando o Estado se ausenta, tudo o que sobra é o cálculo cru de quem importa e quem deve lidar com o resto. O roteiro acompanha essa travessia por estradas vazias, ônibus lotados, caminhões improvisados e, sobretudo, tensões que não precisam ser sublinhadas para serem compreendidas. Chandan esconde sua origem de casta com a mesma naturalidade de quem aprendeu, desde cedo, que sinceridade pode custar caro. Shoaib conhece outra espécie de parede, aquela erguida pela suspeita automática que recai sobre qualquer homem muçulmano em determinadas regiões. O filme constrói a intimidade dos dois de maneira gradual: um gesto de cuidado aqui, uma desconfiança dissolvida ali, até que a relação se transforma na única âncora real durante a travessia.

O mérito maior de “Homebound” está na forma como Ghaywan evita a tentação de transformar sofrimento em espetáculo. A dor não vira efeito especial. Os personagens não precisam gritar para que entendamos o peso que carregam. Alguns momentos permanecem não por grandiosidade, mas por precisão emocional: o corpo de Chandan apoiado nas costas de Shoaib; o silêncio que se instala quando alguém menciona a possibilidade de revelar a casta; o modo como olhares atravessam cada esquina, lembrando que, mesmo antes da pandemia, muitos já viviam em isolamento permanente. A fotografia adota uma sobriedade que conversa com esse universo, quase sempre observando mais do que intervindo, como se tivesse consciência de que qualquer manipulação excessiva quebraria o frágil equilíbrio da história.

Apesar disso, existe um limite na construção narrativa que impede “Homebound” de alcançar um impacto mais devastador. É como se o filme preferisse se proteger dentro de um mesmo registro emocional, evitando saltos mais arriscados. Mesmo quando as situações se intensificam, a curva dramática não se expande de verdade. A sensação é de acompanhar uma série de episódios delicados, alguns belíssimos, outros menos urgentes, mas ainda assim fragmentados. Falta uma espinha dorsal mais firme, algo que impulsione os personagens para além da constatação de que o mundo é injusto. Essa ausência de movimento acaba diluindo parte do potencial crítico da trama, sobretudo porque o filme convoca temas que pediriam uma postura mais incisiva: desigualdade de casta, vulnerabilidade religiosa, abandono estatal. Tudo está ali, porém sem se aprofundar o suficiente para gerar atrito intelectual.

Há ainda pequenos deslizes que comprometem a autenticidade, detalhes minúsculos para qualquer espectador estrangeiro, mas gritantes para quem conhece o norte da Índia. A escolha de termos como Ma’am, que raramente fazem parte do vocabulário das regiões de UP, Bihar e Jharkhand, cria uma leve estranheza. É como se, em meio a uma tentativa de realismo social, uma fresta artificial se abrisse. Ghaywan já demonstrou, em outros momentos da carreira, uma capacidade mais aguçada de alcançar nuances linguísticas. Aqui, porém, esses ruídos lembram que a verossimilhança não depende apenas do cenário, mas também da respiração cotidiana dos personagens.

Mesmo com essas reservas, “Homebound” guarda uma força particular: a consciência de que amizade não serve como antídoto para o país, mas pode, por instantes, oferecer um campo de resistência possível. Chandan e Shoaib não superam a desigualdade, não derrubam estruturas seculares, não encontram redenção plena. Mas constroem uma espécie de pacto afetivo que funciona como bússola em meio à precariedade. Talvez seja justamente essa franqueza que conserve o filme na memória: ele não tenta iluminar o mundo inteiro, prefere se concentrar na faísca breve que existe entre duas pessoas atravessando um território que não lhes oferece abrigo. E há algo nesse gesto que permanece, como um lembrete incômodo de que certas travessias continuam inacabadas muito depois dos créditos.

Filme: Homebound
Diretor: Neeraj Ghaywan
Ano: 2025
Gênero: Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★