Para maratonar: série que satiriza 30 anos de cultura pop é mais inteligente do que parece e está na Netflix Divulgação / Hulu

Para maratonar: série que satiriza 30 anos de cultura pop é mais inteligente do que parece e está na Netflix

A primeira impressão que “Future Man” provoca é a de uma provocação travestida de comédia juvenil: nada ali parece disposto a se levar a sério, e talvez seja justamente essa recusa obstinada à solenidade que libere a série para algo mais interessante que a simples paródia. Em vez de repetir a ladainha nostálgica que tantas produções tentam vender como homenagem, ela prefere esgarçar cada referência até o limite do absurdo, como se testasse a paciência do espectador e, ao mesmo tempo, sua cumplicidade. O resultado é um híbrido que não pede licença para existir e rejeita qualquer expectativa de coerência narrativa clássica. Aparentemente caótica, a série funciona como uma grande brincadeira sobre vícios culturais que insistimos em cultivar, especialmente o hábito de idolatrar ficções futuristas enquanto ignoramos o presente que nos escapa pelas frestas.

A jornada de Josh Futterman, esse zelador sem brilho interpretado por Joel Hutcherson, nasce da derrota cotidiana e desemboca em uma missão de salvamento planetário desencadeada por um jogo considerado impossível. Não se trata apenas do clichê do sujeito comum convocado a resolver um impasse apocalíptico; a série prefere exagerar cada etapa, como se procurasse revelar o ridículo por trás da tradição narrativa que consagrou heróis improváveis. Tiger e Wolf, vividos por Eliza Coupe e Derek Wilson, entram em cena como caricaturas ambulantes de um futuro despedaçado, sempre prontos para destruir mais do que corrigem. Essa trindade improvável se lança pelo tempo em uma sequência de interferências que não tem qualquer compromisso com a estabilidade causal, e seria absurdo exigir isso de uma história que usa paradoxos sem a menor intenção de explicá-los.

O que mantém “Future Man” de pé não é a lógica interna (frágil por escolha), mas a forma como a trama desmonta o fascínio contemporâneo por viagens temporais, um recurso tão explorado que virou muleta para roteiros ansiosos por parecer engenhosos. A série compreende que não existe nada mais divertido do que observar personagens armados até os dentes tropeçando em suas próprias pretensões épicas. A violência excessiva de Tiger, o desajuste emocional de Wolf e o amadorismo angustiado de Josh funcionam como espelhos distorcidos de gerações criadas para acreditar que o futuro é sempre um lugar a ser conquistado, mesmo quando ninguém faz ideia do que isso significa. Em vez de reverenciar seus modelos, o roteiro prefere desfigurá-los até restar apenas a confissão de que não somos herdeiros de mitologias pop, e sim reféns delas.

O desfile de referências, às vezes descarado, às vezes mais sutil, cumpre dupla função: diverte e saturar. Quando a narrativa convoca ecos de James Cameron, parodia clássicos de viagens temporais ou desmonta filmes que embalamos com devoção, ela abre espaço para um comentário mais ácido sobre nosso vício por narrativas prontas, essa dependência confortável que faz do passado um cardápio infinito de repetições. A série sabe que esse jogo pode cansar, mas não tenta esconder seus excessos. Ao contrário, assume a compulsão de modo tão frontal que a repetição deixa de ser marra e vira parte da piada, como se dissesse que a cultura de massa já produziu tantas versões da mesma aventura que só resta rir da própria saturação.

Aos poucos, personagens que pareciam arquétipos ganham contornos menos previsíveis. Wolf transita do guerreiro bruto para uma figura surpreendentemente vulnerável, como se descobrisse, contra a própria vontade, que a vida oferece alternativas além da violência. Tiger, movida por uma urgência quase trágica, percebe que nem toda missão salva quem a cumpre. E Josh, no centro do caos, passa a funcionar como uma espécie de mediador improvisado entre dois mundos que não se suportam: o presente banal e o futuro colapsado. Essa evolução não transforma a série em drama; o humor permanece desbragadamente escrachado, com direito a fluidos corporais, explosões gratuitas e uma sequência de decisões tão equivocadas que parecem fruto de um experimento social. Mas essa camada grotesca nunca impede a emergência de algo mais estranho, quase melancólico, como se a série cochichasse que a salvação do mundo talvez não passe de uma fantasia confortável inventada por quem se sente perdido no próprio cotidiano.

O descompasso estrutural, assumido desde o início, vira parte do charme peculiar de “Future Man”. A narrativa não finge ser sofisticada, e talvez resida justamente aí sua força. No lugar de tentar organizar coerências inexistentes, a série prefere expor o desarranjo como método. É nesse gesto que o humor encontra uma espécie de liberdade crítica, permitindo que o absurdo sirva de lente para questionar não apenas a própria história, mas a obsessão cultural por futuros distópicos que se repetem como advertências que ninguém mais leva a sério. Ao zombar desses alertas, a série devolve ao gênero algo que havia sido perdido: a capacidade de rir de seus próprios vícios.

Quando a última temporada fecha as cortinas, não sobra a sensação de lição moral ou de arco heroico destinado a inspirar gerações. O que permanece é a percepção de que as narrativas sobre o amanhã talvez contem mais sobre nossas manias de grandeza do que sobre qualquer possibilidade real de mudança. “Future Man” aposta todas as fichas no exagero para revelar essa fragilidade, lidando com o futuro como um espaço onde o erro é inevitável e a tentativa de consertá-lo costuma produzir catástrofes ainda maiores. Essa é a ironia mais saborosa da série: a constatação de que o caos, por vezes, é mais honesto do que qualquer promessa de ordem.

Filme: Future Man
Diretor: Howard Overman, Kyle Hunter e Ariel Shaffir
Ano: 2020
Gênero: Ação/Aventura/Comédia/Fantasia/Ficção Científica
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★