Em Madrid, no início da década de 1930, uma jovem escreve sobre sexualidade feminina, participa de reuniões políticas e desperta atenção de dirigentes socialistas. Hildegart Rodríguez, interpretada por Alba Planas, é tratada como prodígio por sua desenvoltura em debates públicos e domínio de temas que cruzam ciência, educação e direitos das mulheres. “A Virgem Vermelha”, drama biográfico dirigido por Paula Ortiz e estrelado também por Najwa Nimri, Aixa Villagrán, Patrick Criado e Pepe Viyuela, revela cedo o conflito central: a distância entre a imagem de intelectual independente e a vida controlada por uma mãe que planejou cada etapa de sua formação.
Aurora, vivida por Najwa Nimri, organiza a casa como extensão de um laboratório político. Livros empilhados, anotações e horários estritos compõem a rotina que ela impõe à filha desde a infância. A concepção de Hildegart é apresentada como ato deliberado: Aurora reuniu textos científicos, teorias sociais e discursos de renovação moral para moldar a “mulher nova” que, em sua visão, serviria de referência para a Espanha republicana. O objetivo declarado é fazer da jovem instrumento de mudança política por meio da escrita, de palestras e da atuação em instituições progressistas.
À medida que Hildegart cresce, publica artigos e recebe convites para conferências, o filme mostra como esse reconhecimento altera o equilíbrio doméstico. Editores, militantes e médicos começam a tratá-la como figura pública capaz de influenciar debate nacional. Esse movimento reforça o desejo da jovem de circular mais pela cidade e ampliar contatos fora do ambiente controlado da mãe. Para Aurora, cada elogio dirigido à filha sem seu nome associado funciona como alerta. A tensão entre orgulho e ciúme se intensifica, e o comportamento dela assume vigilância rígida sobre cartas, reuniões e visitas.
Paula Ortiz estrutura o desenvolvimento dessa relação por contraste espacial. O apartamento de Aurora, com cortinas pesadas e objetos dispostos de forma meticulosa, expressa o controle que ela tenta manter. Já as cenas externas, com cafés movimentados, ruas amplas e sedes partidárias cheias de vozes, simbolizam a abertura de possibilidades para Hildegart. A diretora usa esses ambientes para evidenciar o que está em disputa: a fronteira entre projeto e vida própria, entre teoria política e experiência concreta.
A entrada de Abel Vilella, interpretado por Patrick Criado, intensifica o conflito. Jovem militante socialista, ele demonstra interesse por Hildegart e passa a acompanhá-la em reuniões e discussões públicas. A aproximação provoca mudança clara nos objetivos da protagonista. Ela passa a considerar afetos e amizades que não se limitam às instruções maternas. Cada encontro com Abel oferece à jovem visão mais ampla da militância e do cotidiano político, e amplia o desejo de autonomia. Aurora reage elevando o nível de controle e reforçando a ideia de que a filha não pode se desviar do projeto que justificou sua existência.
A atuação de Alba Planas reforça essa divisão interna. Em eventos públicos, Hildegart fala com clareza e firmeza, consciente de seu papel como referência para movimentos feministas e setores da esquerda. Em casa, a postura muda. A jovem hesita, recua diante de perguntas e tenta negociar algum espaço íntimo sem romper com a mãe. Najwa Nimri, por sua vez, compõe Aurora com energia que oscila entre confiança intelectual e medo silencioso de perder aquilo que considera sua obra. Esses desempenhos sustentam o drama, pois traduzem em gestos e silêncios o abismo crescente entre as duas.
O filme avança em ritmo de tensão constante. A montagem destaca a velocidade da ascensão de Hildegart, com recortes de jornal, convites de editores e debates disputados. Paralelamente, a narrativa marca o tempo doméstico como repetição de ordens, leituras e correções. A diferença entre esses ritmos ajuda a explicar o descompasso crescente entre mãe e filha: a Espanha se abre para ideias novas, e Hildegart tenta acompanhar esse movimento, enquanto Aurora tenta preservar um ideal fixo construído décadas antes.
O contexto político permeia as escolhas das personagens. Rádios, manchetes e discussões em cafés apontam instabilidade crescente da Segunda República, com disputas entre grupos conservadores e reformistas. Aurora enxerga nesse ambiente sinais de ameaça, e reforça o isolamento da filha como medida de proteção e preservação do projeto. Hildegart, ao contrário, percebe nas mesmas notícias a necessidade de participar mais ativamente do debate público, com posições próprias sobre contracepção, educação sexual e reformas legais. A diferença de interpretação desses sinais aprofunda o conflito e torna qualquer tentativa de conciliação mais improvável.
Com o aumento da vigilância doméstica, Hildegart busca nas relações externas o que lhe falta em casa: interlocutores que a tratem como autora e não como extensão de um plano. Encontros com editores, conversas com médicos e trocas com jovens militantes ampliam a confiança da protagonista e produzem pequenas rupturas na rotina imposta por Aurora. Cada pequeno gesto — sair sem avisar, demorar em um café, recusar uma revisão compulsória — passa a representar risco para a ordem doméstica.
O ponto máximo dramático se forma quando essas escolhas se acumulam. Aurora, cada vez mais convencida de que o mundo externo ameaça o projeto que conduziu por décadas, intensifica o controle a níveis insustentáveis. Hildegart, decidida a assumir sua própria trajetória, afasta conselhos maternos e planeja passos que escapam totalmente ao roteiro original. A colisão entre essas decisões se torna inevitável, e a narrativa prepara o espectador para o impacto final sem detalhar o desfecho.
“A Virgem Vermelha” encerra esse percurso com imagem que sintetiza a luta entre controle e autonomia: a máquina de escrever parada sobre a mesa, diante de páginas em branco que aguardam a história que Hildegart tentava escrever longe das ordens da mãe.
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