A fantasia caótica de Terry Gilliam com Damon e Ledger chega à Netflix para provar que contos de fadas nunca foram inocentes Divulgação / Dimension Films

A fantasia caótica de Terry Gilliam com Damon e Ledger chega à Netflix para provar que contos de fadas nunca foram inocentes

A floresta de um conto popular costuma ser tratada como um espaço simbólico, mas em certas narrativas ela se impõe como registro geopolítico involuntário, uma zona cinzenta onde impérios testam limites e indivíduos negociam a própria relevância. “Os Irmãos Grimm” mergulha exatamente nesse território, ainda que com a leveza colorida de um espetáculo de fantasia. O curioso é que, por trás do verniz de aventura, o filme expõe uma tensão que ressoa para além da tela: a tentativa de transformar fabulações ancestrais em mercadoria palatável, sem admitir que a própria natureza dessas histórias repele domesticações. Essa fricção, ora ruidosa, ora quase cômica, sustenta o interesse da narrativa, mesmo quando ela escorrega em escolhas previsíveis.

Há uma espécie de jogo entre versões possíveis da imaginação europeia, como se a produção tentasse conciliar o espírito inquieto de tradições orais com o pragmatismo de uma indústria que gostaria de extrair delas apenas entretenimento. Matt Damon e Heath Ledger parecem corporificar esse dilema. Um se move com a convicção de quem precisa transformar cada lenda em método; o outro, com o olhar inquieto de quem pressente que o improviso carrega uma lógica própria. O contraste entre os dois funciona não apenas como estratégia dramática, mas como comentário involuntário sobre a dificuldade de encaixar fantasias antigas nas narrativas industriais contemporâneas. A química funciona porque ambos assumem seus papéis com energia, mesmo quando o roteiro lhes entrega conflitos concentrados de maneira abrupta.

O ambiente político da história, situado em um território alemão sob dominação francesa, adiciona uma camada inesperada ao que poderia ser apenas um desfile de criaturas folclóricas. O controle militar, as imposições administrativas e a lógica punitiva dos oficiais estrangeiros transformam o espaço em uma espécie de laboratório de propaganda. A fantasia se imbrica com a política como se lembrasse que até os delírios de coerção têm uma genealogia histórica. O filme não explora essa chave com profundidade analítica, mas deixa brechas suficientes para que se perceba como a coerção estatal e a mitologia popular dialogam na produção do medo coletivo. Há uma graça sutil nesse contraste, porque a opressão francesa surge caricata, mas a opressão real da época certamente não foi tão cartunesca.

Em meio a essas tensões, personagens como Cavaldi surgem como exageros que testam a paciência e, ao mesmo tempo, funcionam como válvulas de humor. A escolha de torná-lo um agente quase farsesco é reveladora: em histórias de fantasia, figuras do poder raramente são retratadas com a complexidade que lhes daria verossimilhança, e isso inclui tanto vilões quanto chefes militares. Já Angelika, com sua energia melancólica, tenta sustentar um eixo emocional que o filme não se compromete a aprofundar. Monica Bellucci, com presença cênica evidente, aparece menos do que deveria, e sua personagem poderia ter articulado melhor a tensão entre sedução, maldição e isolamento. A sensação é de oportunidades interrompidas.

O filme adota uma estrutura que, em vez de se expandir organicamente, se dispersa em episódios. Essa fragmentação cria a impressão de que a narrativa está sempre prestes a alcançar uma densidade maior, mas se afasta disso por receio de assustar o público. O resultado é uma experiência curiosa: encantadora na superfície, hesitante no núcleo. A fantasia se acomoda em efeitos e sequências movimentadas, enquanto os conflitos internos dos protagonistas aparecem condensados em poucos momentos, como notas de rodapé emocionais. Isso prejudica principalmente a fluidez das relações entre os personagens, que poderiam revelar mais ambiguidade e contradições interessantes.

Ainda assim, há algo fascinante na forma como “Os Irmãos Grimm” resgata a materialidade das fábulas. Em vez de apostar inteiramente no triunfo da imaginação, a narrativa alterna espanto e decomposição, magia e brutalidade. As florestas possuem vida própria, mas também sombras que lembram ossuários; criaturas encantadas convivem com silêncios ásperos; o lúdico esbarra continuamente no grotesco. Essa combinação funciona porque devolve às lendas um pouco da sua aspereza original, antes de terem sido suavizadas para consumo infantil. Nesse sentido, a história se aproxima daquilo que as versões mais antigas dos contos carregavam: um alerta moral ambíguo, feito para comunidades inteiras, não apenas para crianças.

A direção, mesmo tensionada por interferências externas, conserva lampejos do impulso imaginativo que tornou o cineasta conhecido. São momentos em que a narrativa se distende e permite que a fantasia respire, evitando que a história se torne mero produto industrial. Embora esses instantes não sejam constantes, cada um deles funciona como lembrete de que a imaginação continua sendo um território de disputa, inclusive estética. Esse aspecto é reforçado pela ambientação, que combina vilas deterioradas, bosques enigmáticos e construções que parecem erguidas sobre o limite entre racionalidade e superstição.

Ao sugerir mistérios não completamente resolvidos, o longa acena para uma inquietação que permanece além das cenas finais. Em vez de oferecer explicações confortáveis, preserva uma zona de incerteza que se coaduna com o espírito dos contos tradicionais. Esse gesto, ainda que discreto, impede que a narrativa se dissolva imediatamente na memória. Ao contrário, instiga reflexões sobre o que é fabricado, o que é herdado e o que persiste apesar das tentativas de simplificação. “Os Irmãos Grimm” talvez não alcance a força inventiva que poderia ter, mas insinua, com sutileza, que a imaginação ainda guarda autonomia, mesmo quando cercada por pressões comerciais. É nesse pequeno desvio, quase clandestino, que o filme encontra sua melhor contribuição.

Filme: Os Irmãos Grimm
Diretor: Terry Gilliam
Ano: 2005
Gênero: Ação/Aventura/Comédia/Fantasia/Terror
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★