Os 10 livros que Ernest Hemingway mandou um desconhecido ler antes de tentar ser escritor

Os 10 livros que Ernest Hemingway mandou um desconhecido ler antes de tentar ser escritor

Nos anos 1930, enquanto os Estados Unidos tentavam atravessar a Grande Depressão, um jovem do norte caminhava para longe do campo onde nascera. Arnold Morris Samuelson veio ao mundo em 6 de fevereiro de 1912 em White Earth, no estado de Dakota do Norte, filho de imigrantes noruegueses, e morreria em 1º de setembro de 1981. Foi jornalista e aspirante a escritor, formado pela Universidade de Minnesota, e hoje é lembrado sobretudo pelo livro de memórias “With Hemingway: A Year in Key West and Cuba” e por textos esparsos publicados em jornais americanos. A ligação do seu nome com Ernest Hemingway começou com um conto lido por acaso e terminou numa pequena lista de livros copiada à mão, que décadas mais tarde ganharia vida própria.

A infância de Arnold Samuelson decorreu numa fazenda de trigo, numa casa de barro, em meio a invernos rigorosos e trabalho pesado. As lembranças de familiares e amigos o descrevem como um menino inteligente, inquieto, frequentemente em choque com o ambiente religioso e conservador à sua volta. Na igreja, discutia com o pastor depois dos cultos. Em casa, vivia dividido entre as tarefas do campo e a vontade de tocar violino e ler. A sensação de inadequação diante da vida rural, somada à curiosidade por outras paisagens, empurrava o jovem para longe da fazenda, primeiro em imaginação, depois em quilômetros.

Quando se mudou para Minneapolis para estudar na Universidade de Minnesota, viu uma chance concreta de aproximar a escrita do cotidiano. Escolheu jornalismo, escreveu reportagens e crônicas, aprendeu a rotina de redações e tipografias. Ao concluir o curso, recusou-se a pagar a taxa de cinco dólares necessária para receber o diploma. O gesto misturava teimosia, falta de dinheiro e desconfiança em relação a rituais formais num período em que quase tudo parecia instável. Em vez de buscar emprego fixo em um jornal, decidiu rodar o país com o violino às costas, vendendo relatos de viagem para o “Sunday Minneapolis Tribune” quando surgia oportunidade.

O percurso de Samuelson foi atravessado, em 1931, por um episódio que deixaria marcas profundas: o assassinato da irmã mais velha, Hedvig, em um crime conhecido nacionalmente como “The Trunk Murders”. Ele tinha vínculos com o “Minneapolis Tribune” quando o caso ganhou manchetes e viu o sobrenome da família aparecer nas colunas policiais. A mistura de luto, exposição e constrangimento reforçou o impulso de ir embora, de buscar outro tipo de vida em lugares onde ninguém o reconhecesse pelo noticiário. Essa tensão entre fuga e desejo de escrever acompanharia o jovem pelos anos seguintes.

Em abril de 1934, já de volta a Minnesota depois de viagens pela Califórnia e por outros estados, Samuelson leu na revista “Cosmopolitan” o conto “One Trip Across”, assinado por Ernest Hemingway. A história, que mais tarde seria incorporada ao romance “Ter e Não Ter”, mostrava um capitão de barco em Key West, envolvido em contrabando e dificuldades econômicas, narrado em frases enxutas e cenas precisas. O impacto foi imediato. O rapaz decidiu que precisava ouvir do próprio autor o que significava escrever daquela maneira. Sem carta, sem contato comum, resolveu viajar até Key West para tentar encontrá-lo pessoalmente, confiando apenas na estrada e na própria insistência.

A maioria dos andarilhos seguia para o norte em busca de frentes de trabalho temporário. Samuelson tomou a rota oposta. Pegou caronas por estradas poeirentas, dependente da boa vontade de caminhoneiros e motoristas desconhecidos. Já na Flórida, conseguiu subir em um trem de carga que seguia sobre as pontes do antigo trajeto ferroviário até Key West. Viajou ao ar livre, sentindo o vento e vendo água por todos os lados, com os trilhos estendidos sobre o mar. Anos mais tarde, ao rememorar a cena, diria que a travessia tinha algo de sonho acordado, improvável demais para ser repetida.

O choque com a realidade foi rápido. Key West vivia um período de crise econômica: fábricas de charuto fechadas, pesca fraca, poucas vagas de trabalho. Sem dinheiro para um quarto, Arnold dormiu no cais, usando a mochila como travesseiro, até ser despertado por um policial que preferiu levá-lo à cadeia municipal a deixá-lo na rua. Passou algumas noites na cela cheia de mosquitos, saindo todas as manhãs para vagar pelas ruas estreitas em busca de trabalho e, em paralelo, do endereço de Hemingway. Nesse circuito entre o cais, a cela e as esquinas da ilha, foi se aproximando da casa de dois andares na Whitehead Street, perto do farol, onde o escritor vivia com a família.

O encontro decisivo aconteceu quando ele subiu a escadaria da varanda e bateu à porta. Ernest Hemingway apareceu na moldura, alto, ombros largos, expressão fechada, e perguntou o que aquele estranho queria. O rapaz, sem repetir o discurso que havia ensaiado, conseguiu dizer que tinha vindo de Minneapolis para conversar depois de ler o conto na “Cosmopolitan”. A tensão diminuiu. Hemingway combinou um horário para o dia seguinte. Quando Samuelson voltou, encontrou o escritor sentado à sombra, de calças cáqui e chinelos, com um copo de uísque e o “New York Times” ao lado. Ali começaram conversas regulares sobre trabalho, leitura e a rotina de escrita.

Hemingway falava de modo direto. Dizia que não se devia escrever até o esgotamento, que o ideal era parar quando ainda se sabia o que vinha na página seguinte, confiar na noite para organizar o que tinha sido feito e retomar na manhã seguinte reescrevendo o trecho anterior. Para um jovem acostumado a produzir de forma irregular, entre caronas e pequenos bicos, ouvir alguém descrever um ritmo de trabalho tão concreto funcionava como um mapa. Parte dessas falas apareceria em “Monologue to the Maestro: A High Seas Letter”, publicado na revista “Esquire”, e outra parte seria preservada no manuscrito que, anos após a morte de Samuelson, daria origem a “With Hemingway: A Year in Key West and Cuba”.

Em uma dessas tardes, a conversa se voltou para leitura. Hemingway perguntou que autores o visitante já tinha lido. Samuelson mencionou “Raptado”, de Robert Louis Stevenson, “Walden”, de Henry David Thoreau e outros livros que o tinham marcado. O anfitrião ouviu em silêncio e então sugeriu que subissem ao estúdio sobre a garagem. No cômodo quadrado, com piso de azulejo, janelas com venezianas e estantes cheias, Hemingway sentou à escrivaninha, pegou uma folha e uma caneta e começou a escrever uma lista. Samuelson ficou de pé diante da mesa, acompanhando cada pausa da mão que deslizava pelo papel. A folha que nascia ali não trazia explicações, apenas nomes de autores e títulos.

Quando terminou, entregou o papel com uma seleção que começava com o volume de contos “O Monstro e Outras Histórias (1899)”, de Stephen Crane, que reúne textos como “O Hotel Azul” e “O Barco Aberto”, e seguia com romances que ele considerava fundamentais: “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert, “Dublinenses”, de James Joyce, “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal, “Servidão Humana”, de W. Somerset Maugham, “Anna Karenina” e “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói, “Buddenbrooks”, de Thomas Mann, “Os Irmãos Karamazov”, de Fiódor Dostoiévski e “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë. A mensagem implícita era simples: antes de olhar para os contemporâneos, valia medir forças com autores cuja obra atravessara décadas de leitura.

Hemingway completou o gesto tirando da estante um volume de contos de Stephen Crane e um exemplar de “Adeus às Armas”, que emprestou a Samuelson com a condição de que fossem devolvidos. O jovem levou os livros para a cela, leu rápido e, no dia seguinte, voltou à casa da Whitehead Street para devolvê-los. Nessa altura, o anfitrião já havia encontrado um modo de manter o rapaz por perto. Contou que precisava de alguém para dormir a bordo do barco de pesca, o “Pilar”, então a caminho de Nova York, e depois mantê-lo em ordem em Key West e em viagens até Cuba. Perguntou quais eram os planos de Samuelson. Diante da resposta vaga, ofereceu um dólar por dia em troca de serviço no barco.

O acordo inaugurou um ano de convivência intensa. Samuelson dormia no “Pilar”, cuidava da limpeza e da manutenção, ajudava a preparar saídas de pesca, acompanhava Hemingway em deslocamentos longos e, nas horas livres, tentava escrever. Em alto-mar, as conversas sobre literatura se misturavam a histórias de guerra, de viagens, de outros escritores. O jovem ouvia, fazia perguntas, rasgava páginas, recomeçava. Décadas depois, as anotações realizadas naquele período serviriam de base para “With Hemingway: A Year in Key West and Cuba”, publicado em 1984, que ofereceria a leitores e pesquisadores um retrato raro do cotidiano do autor de “Adeus às Armas” e “O Velho e o Mar” em Key West.

Depois dessa temporada no “Pilar”, a vida de Arnold Samuelson não se transformou em trajetória de consagração imediata. Ele continuou a escrever, a viajar, a aceitar trabalhos irregulares. Voltou ao jornalismo, publicou relatos como “Mexico for Tramps” na “Esquire”, enfrentou períodos de dificuldade financeira e relações familiares tensas. Quando morreu, em 1981, deixou cadernos e manuscritos que a filha, Dian Darby, reuniu e enviou a uma editora. O resultado foi a publicação póstuma de “With Hemingway: A Year in Key West and Cuba”, que recebeu o prêmio Ambassador of Honor e passou a ser fonte recorrente para biógrafos e estudiosos de Hemingway.

Entre as histórias que o livro preserva, poucas são tão concretas quanto a imagem daquele papel escrito à mão no estúdio da casa em Key West. A lista de romances e contos escolhidos por Hemingway nasceu de uma conversa entre dois homens em posições muito diferentes de reconhecimento público, ligados pela mesma obrigação de ler e trabalhar todos os dias. Hoje, quando se recorta dessa relação um conjunto de dez títulos para apresentar a novos leitores, o gesto ecoa o momento em que um jovem sem diploma e sem garantias atravessou o país para pedir orientação. O que se oferece é uma porta de entrada num pequeno círculo de obras que continuam a testar a resistência de quem escreve e a curiosidade de quem lê.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.