Épico com Tom Cruise é um dos filmes mais belos do século 21, agora no Prime Video e HBO Max Divulgação / Warner Bros

Épico com Tom Cruise é um dos filmes mais belos do século 21, agora no Prime Video e HBO Max

“O Último Samurai” se abre como uma fissura histórica pela qual escapa algo mais complexo que a simples oposição entre tradição e modernidade. O filme funciona como um laboratório emocional onde identidades são tensionadas, desmontadas e reconstruídas diante do espectador. A jornada de Nathan Algren (Tom Cruise) não é a de um herói regenerado, mas a de um homem que tenta compreender o que resta de si quando todas as certezas que sustentavam sua vida se desfazem. A embriaguez constante, os fantasmas militares e o desprezo por sua própria trajetória revelam alguém que atravessa o mundo tentando escapar da própria biografia.

Quando Algren chega ao Japão, o olhar estrangeiro que carrega não é guia, mas obstáculo. Ele interpreta tudo pela lente do desencanto, como se estivesse diante de mais um capítulo de um livro que já conhece e despreza. A captura pelos samurais, entretanto, inaugura uma espécie de suspensão perceptiva. Katsumoto (Ken Watanabe), líder de um clã ameaçado pela pressa modernizadora, rompe a lógica previsível de adversário. Watanabe constrói esse personagem com uma força interior que se expressa no ritmo do silêncio, na contenção dos gestos e na forma como consegue transformar cada diálogo em uma sondagem moral. Sua presença é tão densa que Algren, sem admitir, passa a orbitá-lo como alguém que finalmente encontra um norte ético possível.

Os encontros entre Algren e Katsumoto não funcionam como trocas pedagógicas entre culturas, mas como choques ideológicos que revelam a instabilidade de ambos. Em vez de exotizar o universo samurai, o filme deixa evidente um país dividido entre a pressa industrial e a permanência de valores que ainda organizavam sua vida comunitária. A dinâmica é ainda mais intensa quando Taka (Koyuki) aparece em cena. A relação entre ela e Algren, marcada por hesitações e memórias feridas, evita sentimentalismos fáceis e demonstra como a intimidade também pode carregar tensões políticas. O gesto de acolhê-lo não é simples gentileza, mas expressão de uma ética que tenta sobreviver em meio a transformações violentas.

Esse Japão do fim do século 19, retratado em plena convulsão, funciona quase como um personagem. A modernização forçada, alimentada por conselheiros fascinados com armas, máquinas e acordos ocidentais, escancara um país que sabe que precisa avançar, mas teme perder sua espinha dorsal cultural. O curioso é que a presença de Algren, um americano contratado para ensinar técnicas militares modernas, expõe o paradoxo: ele se torna testemunha daquilo que seus próprios compatriotas, historicamente, ajudaram a acelerar. Há um momento em que o olhar de Algren, antes aguçado apenas pela culpa, parece inclinar-se para um tipo de entendimento que dispensa patriotismos vazios.

As batalhas são menos importantes pelo espetáculo e mais pela forma como revelam a assimetria entre dois modelos de mundo. Não há glória possível quando a história decide acelerar sem negociação. Katsumoto reconhece que seu modo de vida está encurralado, mas não o abandona; Algren percebe que a modernização, quando reduzida a eficiência bélica, produz culturas descartáveis. Essa dupla consciência transforma a última grande investida dos samurais em algo mais que derrota militar: é a constatação de que a memória, quando triturada pela pressa, sempre tenta encontrar maneira de resistir, mesmo que à custa da própria sobrevivência.

Há quem enxergue uma romantização evidente nesse confronto, mas talvez o filme encontre força justamente na ambiguidade. Em vez de glorificar uma cultura ou condenar outra, ele acompanha personagens que tentam se equilibrar entre ética, lealdade e a percepção de que nenhum projeto histórico é puro. A aproximação entre Algren e Katsumoto se torna, assim, menos um gesto de reconciliação cultural e mais uma tentativa de compreender o valor de uma vida guiada por algo que não se submete ao cálculo político.

É esse terreno, feito de conflitos internos e escolhas impossíveis, que torna “O Último Samurai” tão instigante. O passado retratado pode ser distante, mas o dilema é profundamente atual: como preservar sentido em um mundo que se transforma rápido demais para que qualquer tradição encontre seu lugar? O filme, sem entregar respostas confortáveis, convida o espectador a pensar na fragilidade de tudo o que julgamos permanente. Nesse gesto, instala uma inquietação que permanece mesmo depois que os créditos terminam.

Filme: O Último Samurai
Diretor: Edward Zwick
Ano: 2003
Gênero: Ação/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★