Thriller policial com elenco premiado está na Netflix e vai deixar sua mente em frangalhos Divulgação / Warner Bros.

Thriller policial com elenco premiado está na Netflix e vai deixar sua mente em frangalhos

Logo nas primeiras cenas de “Os Pequenos Vestígios”, fica evidente que a história não pretende oferecer conforto. Há um cansaço impregnado no olhar de Joe Deacon, chamado de Deke pelos colegas, interpretado por Denzel Washington, que não depende de diálogos para se fazer entender. Ele atravessa Los Angeles como quem revisita um fantasma íntimo, e a cidade retribui com ruas silenciosas demais, luzes que parecem falhar de propósito e uma atmosfera onde cada detalhe sugere algo deslocado, quase clandestino. Não é um thriller tradicional; é um convite incômodo para observar como a obsessão se instala quando ninguém está prestando atenção.

Jimmy Baxter, vivido por Rami Malek, aparece como o contraponto mais óbvio a Deke, mas essa leitura fácil se desfaz rapidamente. A rigidez meticulosa de Jimmy funciona como verniz para uma personalidade que tenta se convencer de que a lógica pode impedir um colapso. A convivência entre os dois policiais produz uma espécie de contaminação mútua: o veterano deixa escapar seus métodos tortuosos e o novato vai absorvendo, sem perceber, a tentação de seguir o instinto antes do raciocínio. Há algo quase antropológico na forma como o filme acompanha essa aproximação, como se estudasse a erosão moral em câmera lenta.

A entrada de Albert Sparma, interpretado por Jared Leto, muda a cadência de tudo. Ele não assume o papel típico de antagonista; funciona mais como um espelho deformado onde Deke e Jimmy projetam aquilo que não conseguem admitir sobre si mesmos. Sparma se desloca pelo enredo com a serenidade de alguém que conhece perfeitamente o efeito que causa. Sua postura ambígua não desperta apenas suspeitas, mas uma sensação desconfortável de que sua existência é menos sobre culpa e mais sobre provocar dúvidas fatais. Cada gesto dele altera o ar ao redor, como se manipulasse a ansiedade alheia com o cuidado de um relojoeiro.

O que realmente inquieta em “Os Pequenos Vestígios” não é a investigação, mas a percepção de que ela se apoia em bases frágeis. Deke e Jimmy se fixam em Sparma sem qualquer evidência sólida, como se buscassem nele uma resposta para um vazio que antecede o caso. A narrativa brinca com essa hesitação, sugerindo que não estamos diante de um suspense sobre capturar um assassino, e sim de uma análise incômoda sobre a tendência humana de preencher ausências com convicções improváveis. A maneira como a dupla trata Sparma oscila entre certeza febril e insegurança silenciosa, expondo um limite ético que eles já ultrapassaram quando o filme começa.

A instabilidade da montagem reforça esse clima de desorientação. Há cortes que interrompem cenas antes que o espectador consiga decifrar a intenção delas, como se a câmera tivesse medo de permanecer tempo demais onde a verdade poderia aparecer. Essa aceleração indecisa compromete o ritmo, mas também revela algo involuntário: os personagens parecem fragmentados porque o filme se recusa a lhes conceder tempo suficiente para organizar seus próprios pensamentos. O resultado é um fluxo narrativo irregular, conduzido por uma ansiedade que o roteiro não consegue transformar em tensão sustentável.

Quando a história finalmente se concentra no triângulo formado por Deke, Jimmy e Sparma, o filme encontra sua melhor expressão. A dinâmica entre eles sugere que ninguém está realmente interessado em descobrir o culpado; o objetivo parece ser apaziguar um tipo específico de dor. Jimmy quer demonstrar controle, Deke quer exorcizar seus erros antigos, Sparma quer apenas assistir ao desmoronamento alheio. Essa combinação gera um território perigoso onde a busca por respostas se transforma em um processo de deterioração interior. O crime em si se torna quase secundário diante da intensidade com que esses homens se deixam afetar por suspeitas que eles mesmos alimentam.

O final carrega a contradição mais perspicaz de “Os Pequenos Vestígios”. Não existe catarse, mas sim uma tentativa desesperada de reconstruir um sentido mínimo diante do que não pode ser revertido. Jimmy recebe um símbolo que pretende aliviar sua culpa, enquanto Deke utiliza a mentira como um gesto de compaixão torta. A mensagem é perturbadora porque sugere que a necessidade de preservar alguém pode ser mais forte do que o desejo de enfrentar a verdade. Não é um encerramento que tranquiliza; é uma provocação que deixa uma ferida discreta, dessas que o espectador demora dias para identificar.

Filme: Os Pequenos Vestígios
Diretor: John Lee Hancock
Ano: 2021
Gênero: Crime/Drama/Mistério/Suspense
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★