Clássico dos irmãos Coen mostra que a estupidez humana é mais perigosa que o mal — no Prime Video Divulgação / Film1

Clássico dos irmãos Coen mostra que a estupidez humana é mais perigosa que o mal — no Prime Video

Alguns filmes nascem para provar que a estupidez humana pode ser mais assustadora que a maldade. “Fargo” é um deles. O crime aqui não vem de um impulso diabólico, mas de uma soma de equívocos, covardias e pequenas ambições que se transformam em catástrofe. Os irmãos Coen criam um universo gelado e absurdo, onde cada gesto de cordialidade esconde um potencial de destruição. A neve cobre tudo como um lençol que tenta ocultar o grotesco, e o riso surge sempre no instante errado, como se o espectador, cúmplice involuntário, não soubesse se está diante de uma comédia ou de um pesadelo contado em voz calma.

Jerry Lundegaard é o tipo de homem que tenta parecer decente enquanto o mundo desaba sob seus próprios cálculos. Vendedor de carros medíocre, ele decide sequestrar a própria esposa para extorquir o sogro rico, acreditando ter descoberto uma saída engenhosa para seus problemas financeiros. Mas em “Fargo”, cada plano fracassa de maneira quase poética. O crime não se desdobra em uma grande tragédia, e sim em uma sucessão de fiascos que expõem o ridículo dos que acreditam controlar o destino. Jerry não é vilão nem vítima: é apenas o retrato patético do sujeito que confunde esperteza com inteligência.

Os dois criminosos contratados por ele, interpretados por Steve Buscemi e Peter Stormare, são versões extremas do mesmo fracasso moral. Buscemi é o falastrão inseguro, o homem que fala demais porque não sabe pensar. Stormare é o silêncio brutal, a ausência de empatia transformada em rotina. Juntos, eles formam uma dupla tragicômica, presa entre a incompetência e a crueldade. A ironia dos Coen está em tratar a violência com a naturalidade de quem descreve o clima: em “Fargo”, matar é tão banal quanto reclamar do frio.

E é nesse cenário congelado que surge Marge Gunderson, policial grávida e serena, que investiga os crimes com uma paciência quase maternal. Frances McDormand constrói uma personagem luminosa sem precisar brilhar. Sua força está na simplicidade, na lógica desarmada, no olhar que enxerga o óbvio que todos os outros ignoram. Marge é o contraponto moral de um mundo em que o raciocínio virou raridade. Ela observa o caos com ternura e espanto, como quem sabe que o mal não é grandioso, apenas burro. Sua presença devolve humanidade à história, mas também denuncia o quão rara essa humanidade se tornou.

O aviso de que o filme seria “baseado em fatos reais” é uma mentira genial. Os Coen inventam essa pretensa veracidade apenas para zombar da credulidade do público e da própria tradição americana de transformar crimes em mitos. Em “Fargo”, a farsa é tão verdadeira quanto qualquer fato. A violência, a ganância, o desespero: tudo é real porque poderia acontecer a qualquer momento, em qualquer cidade pequena, em qualquer casa com cortinas floridas. O riso que o filme provoca não é de escárnio, mas de reconhecimento.

A beleza de “Fargo” está na sua recusa em explicar o absurdo. A história simplesmente acontece, como um deslizamento de neve que ninguém previu. Cada personagem acredita ser racional, mas todos se movem guiados por impulsos tolos. A frieza da paisagem amplifica essa sensação de insignificância: os corpos desaparecem no branco, as vozes se perdem no vento, e o mal se dissolve sem deixar marcas. É o retrato mais honesto da vida moderna, um lugar onde o erro não é exceção, mas regra.

Quando Marge, ao final, fala com o marido sobre as pequenas alegrias do cotidiano, é como se o filme abrisse uma fresta no gelo. Ela recorda que ainda há bondade, mesmo quando o mundo parece anestesiado pelo absurdo. A lição de “Fargo” não é moral, é existencial: o horror e a ternura convivem, e o que nos salva é apenas a capacidade de continuar espantados. Os irmãos Coen compreendem que o riso, diante do grotesco, é uma forma de sobrevivência.

“Fargo” permanece como um dos retratos mais agudos da estupidez humana travestida de normalidade. Um filme sobre pessoas comuns, presas em suas pequenas vaidades e erros, tentando agir com decência em meio ao colapso que elas mesmas provocam. O tempo só fez torná-lo mais cruelmente atual: seguimos, como Jerry Lundegaard, acreditando que controlamos o enredo, enquanto o gelo se acumula à nossa volta e a tragédia se repete, com o mesmo sotaque polido e o mesmo sorriso cordial.

Filme: Fargo
Diretor: Ethan e Joel Coen
Ano: 1996
Gênero: Comédia/Crime/Drama/Policial/Suspense
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★