Do terror literário de Richard Matheson ao suspense cinematográfico com Will Smith: o filme que você precisa rever no Prime Video Divulgação / Warner Bros.

Do terror literário de Richard Matheson ao suspense cinematográfico com Will Smith: o filme que você precisa rever no Prime Video

Há algo deliciosamente perturbador em observar Nova York reduzida ao silêncio absoluto, como se a cidade que nunca dorme finalmente tivesse sido vencida pelo próprio esgotamento civilizatório. Aí está Robert Neville, o último habitante, ou o último que ainda se lembra de ser humano, arrancando vida de um mundo que decidiu suspender as regras do convívio. Will Smith, costumeiramente associado ao carisma expansivo do entretenimento de massa, toma para si uma responsabilidade inglória: sustentar sozinho o peso de uma civilização que perdeu o sentido. E, surpreendentemente, seu corpo suporta essa ruína com uma dignidade devastadora.

“Eu Sou a Lenda” nasce de um erro científico travestido de esperança: a pretensão humana de domar a morte. O câncer, essa metáfora insistente da falência biológica, enfim teria encontrado seu algoz. Só que, na pressa de nos superarmos, descobrimos que a fronteira entre redenção e tragédia é microscópica, e muito frágil. Quando a cura se converte em maldição, o planeta adoece de vez, e a solidão se torna a forma mais radical de lucidez. Neville não caça monstros: ele caça a lembrança de que a humanidade já foi maior do que sua arrogância.

Há um silêncio que corrói. A companhia confusa de manequins erguidos em lojas abandonadas, o diálogo unilateral com uma cadela que se torna não apenas a última amiga, mas a derradeira testemunha de afetos possíveis: o filme entende que a loucura não chega com gritos, mas com a ausência de respostas. Aquela casa fortificada e aquele laboratório improvisado não são bastiões de resistência, são túmulos adiados, protegidos contra a verdade incômoda de que só se pode lutar contra o vazio até certo ponto.

E, no entanto, o filme tropeça justamente no que lhe dava propósito. A escolha de traduzir os infectados como criaturas digitais, reduzidas à fúria animal, empobrece a dimensão ética do desastre. O romance original e adaptações anteriores sabiam que o horror se intensifica quando o outro ainda lembra um pouco de nós. Aqui, a humanidade dos monstros é quase apagada, um gesto que, ironicamente, sugere que a humanização é o primeiro vírus a ser exterminado sempre que o medo ganha prioridade institucional.

Mesmo com esse deslize, há uma potência imensa nas intermitências de memória: fragmentos de uma família perdida que piscam como lâmpadas prestes a queimar. São elas que justificam a obstinação de Neville, mais do que qualquer heroísmo militar ou cientificamente orientado. Ele não quer salvar o mundo: quer impedir que sua história termine sem sentido.

Talvez a grande audácia de “Eu Sou a Lenda” esteja justamente em recusar consolo. Não há promessas de reconstrução plena, nem glória pós-apocalíptica. O que se preserva é uma espécie de fé torta, não em Deus, não no Estado, mas na teimosia de continuar, apesar de tudo. Na incapacidade de aceitar que estávamos errados ao tentar ser deuses antes de aprendermos a ser humanos.

Se o futuro insistir em se repetir como ruína, ao menos que alguém lá dentro ainda tenha coragem de conversar com um manequim para não esquecer que existimos para criar laços, e não apenas vírus.

Filme: Eu Sou a Lenda
Diretor: Francis Lawrence
Ano: 2007
Gênero: Ação/Drama/Ficção Científica/Suspense
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★