Novo filme com Dakota Johnson e Sean Penn é a joia escondida da HBO Max Vivien Killilea / Getty Images

Novo filme com Dakota Johnson e Sean Penn é a joia escondida da HBO Max

Uma jovem desembarca no aeroporto, chama um táxi e pede o caminho mais direto para casa. O motorista confirma o destino, puxa conversa, testa limites. O que começa como trivial vira laboratório de franqueza e performance social: duas pessoas presas a um mesmo cubo metálico, avançando noite adentro, escolhem o que contar e o que calar. Em “Papai”, escrita e dirigida por Christy Hall, a viagem do aeroporto até Manhattan transforma-se em arena de intimidade, poder e jogo retórico. A cada semáforo, um ajuste de rota emocional; a cada pergunta, uma borda de risco.

Hall constrói o filme como peça de dois atores e identidades em jogo. Dakota Johnson interpreta a passageira com uma calma que nunca é passividade. O corpo contém a pressa, o olhar mede o terreno, as respostas curtas servem de escudo até que, por escolha ou necessidade, se abram passagens para algo mais vulnerável. Sean Penn faz do motorista um anfitrião falastrão, curioso e por vezes invasivo, capaz de alternar piada e dureza sem perder o domínio do volante. O apelido que dá título ao filme, “Papai”, aparece como máscara e provocação, um espelho enviesado para dinâmicas de idade, proteção e controle que culturas diversas insistem em romantizar.

A proposta é simples e arriscada: duas pessoas conversam por 90 minutos com o mundo do lado de fora servindo de contraponto: placas, viadutos, luzes de freio, rádio que vaza notícias, motor que ronca. Hall confia nos atores e na palavra. O diálogo nasce coloquial e vai ganhando densidade até tocar assuntos que pedem tato: consentimento, autoestima, abandono, violência emocional e o modo como trabalho e desejo se misturam e confundem. O filme não busca julgamentos fáceis. Prefere deixar que o público sinta a oscilação entre franqueza e performance, entre revelação sincera e teste de poder.

A encenação tira máximo de um espaço mínimo. O banco traseiro vira confessionário, palco de sedução e trincheira. O banco dianteiro, com o motorista visto por espelho ou em perfil, funciona como cabine de comando de uma história que só anda quando alguém arrisca um novo tema. A fotografia mantém a cidade em bokeh, um rastro de luzes que lembra o fluxo da noite, enquanto o interior do carro recebe cores quentes em contraste com o azul frio do exterior. A sensação é de aquário em movimento: quem está dentro se observa (e é observado) sem pausa.

A montagem trabalha o tempo com inteligência. As pausas contam tanto quanto as respostas. Pequenos silêncios posicionam quem domina a conversa. Quando a tensão cresce, cortes mais curtos sugerem que ninguém quer perder o momento exato de virar o jogo. Quando a confiança se insinua, planos mais longos permitem que frases terminem em suspiro, risada abafada ou uma mudança de expressão que quase passa despercebida. É nesse quase que o filme vive.

Dakota Johnson compõe uma personagem de defesas bem treinadas e curiosidade real. Sabe sair de situações incômodas, mas também decide ficar para ver até onde vai. O prazer da cena está em observar como administra risco, impõe regra e negocia cada centímetro do próprio espaço. Sean Penn brinca com arquétipos de masculinidade charmosa e intempestiva. Seu motorista tanto pode ser o amigo experiente que ensina mapas de cidade quanto o veterano que usa piadas para empurrar limites. A tensão ética nasce daí: o que é cuidado e o que é controle? O que é interesse e o que é invasão?

O roteiro de Hall evita pedantismo e entende que toda conversa carrega negociação. Quando o motorista oferece conselhos de vida, a pergunta que se instala não é “ele tem razão?”, mas “quem ganha com esse conselho?”. Quando a passageira devolve com histórias íntimas, surge outra: “em que ponto abrir feridas vira arma?” O filme não responde, mas evidencia que, no mundo real, respostas dependem de contexto, histórico e poder de barganha. O táxi, como figura da cidade contemporânea, condensa o tema: ali, desconhecidos compartilham espaço e pagam por um serviço que implica confiança mínima, a necessária para atravessar a noite.

Há humor, e ele importa. Piadas sobre excentricidades de clientes, sobre mapas mentais de Nova York, sobre gírias que envelhecem mal. O riso solta o corpo, abre espaço para confidências, e logo a narrativa escava mais fundo. Quando a temperatura sobe, a trilha recua para deixar que o ronco do motor e os sussurros do rádio façam o trabalho de fundo. O som do pisca-alerta vira metrônomo para decisões que ninguém quer tomar.

“Papai” dialoga com tradições de filmes de uma locação, não como truque formal, mas como aposta emocional. A cidade passa como fantasma por janelas em movimento, e o que conta é a cartografia invisível que duas pessoas desenham com palavras. A cada rua cruzada, uma fronteira íntima se redefine; a cada retorno, uma regra muda de lugar. Hall filma com atenção aos gestos pequenos: dedos no couro da bolsa, um riso que desarma, o momento em que o cinto de segurança parece apertar mais que o normal.

O caminho escolhido preserva o risco prometido desde o primeiro minuto. Ao apagar dos faróis, restam o taxímetro zerado, a porta que se abre e um trecho de cidade que segue aceso.

Filme: Papai
Diretor: Christy Hall
Ano: 2023
Gênero: Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★