Um quarto interditado, anotações febris, tempestades como rito de passagem: a partir desse laboratório íntimo, um jovem cientista decide fabricar aquilo que a natureza lhe negara — a abolição da morte. Em “Frankenstein”, dirigido por Guillermo del Toro, Victor (Oscar Isaac) ergue um corpo a partir de sobras, convoca a eletricidade como faísca e, ao encarar o olhar do ser recém-nascido (Jacob Elordi), recua. O abandono torna-se o primeiro gesto de paternidade. A partir daí, a narrativa acompanha dois exilados: o doutor, que tenta esconder a falha sob camadas de orgulho e racionalização; e o ser, que caminha sem nome por florestas, vielas e salões, aprendendo a ler, a falar e a sofrer. Mia Goth compõe Elizabeth com presença moral, exigindo vínculo lá onde Victor só oferece discurso. O filme adapta o romance de Mary Shelley, mantendo a discussão sobre criação, responsabilidade e reconhecimento do outro.
Guillermo del Toro constrói a trajetória como romance gótico de aprendizado: a criatura é criança e filósofo, capaz de ternura, fúria e curiosidade. O horror não aparece como atalho; há tempo para escutar o corpo — respirações, descompassos, o peso de uma mão que reconhece o próprio contorno. Jacob Elordi atua com a gravidade de um gigante constrangido, devolvendo humanidade às cicatrizes sem ocultá-las. Oscar Isaac oferece um Victor dividido entre ambição e culpa, vaidoso no discurso e frágil nos gestos, sempre prestes a justificar-se com a mesma retórica que o conduziu ao abismo. Elizabeth não é ornamento romântico; sua delicadeza guarda nervos expostos, e suas exigências empurram Victor para um território onde não basta inventar: é preciso cuidar.
A imagem, fotografada por Dan Laustsen, trata a luz como instrumento narrativo: brancos que queimam pele, meias-luzes que escondem vergonhas, pretos que engolem corpos quando a recusa vence. A câmera acompanha a respiração, aproxima-se quando alguém descobre uma palavra ou admite uma culpa, recua para que as sombras conversem com a arquitetura. Ambientes — hospitais frios, salões rutilantes, cortiços úmidos — funcionam como espelhos morais. A partitura de Alexandre Desplat aparece com parcimônia, afinada ao amadurecimento da criatura: os temas começam hesitantes e ganham melodia quando o ser conquista linguagem, sem soar triunfal.
Del Toro preserva a espinha ética de Shelley: não há vilão absoluto, há responsabilidades que se negam. A pergunta incômoda se impõe: o que define humanidade — a origem do corpo, a intenção de quem o molda, ou a capacidade de reconhecer dor no outro? Quando o ser tenta integrar-se, encontra medo e crueldade; quando exige justiça, descobre que justiça sem nome pesa menos. Essa via-crúcis rende passagens comoventes: a primeira frase articulada sem tropeços; o instante em que a música que antes acolhera vira motivo de escárnio; o encontro com quem oferece abrigo e paga caro por isso. Cada passo é filmado com paciência, para que o espectador partilhe descobertas, não apenas reaja a sustos.
O roteiro, assinado pelo diretor, evita pirotecnia e trata a ciência como delírio organizado pela dor. Victor quer consertar o que a morte levou, mas recusa compromissos que a vida exige. Essa recusa contamina o ritmo: sempre que parece assumir a criatura, uma nova justificativa o empurra para longe. Em sentido oposto, o ser abandona a brutalidade inicial, domina fonemas, alcança sintaxe, descobre nuances. O arco não procura santificar a criatura — há violência e vingança —, mas mostra como sua ética nasce do contato, não de dogmas. Quando comete atrocidades, o filme não fecha a conta; a responsabilidade circula entre abandono, medo e orgulho.
Há humor discreto nas tentativas de linguagem e há romance entendido como pacto entre vulneráveis. Del Toro, atento a objetos e memórias, retorna a obsessões conhecidas — infância estendida, fé no que é quebrado — sem recorrer a truques repetidos. Figurinos e maquiagem permanecem na fronteira entre o grotesco e o sublime: costuras aparentes, próteses que não escondem a condição híbrida, olhos que desviam quando a vergonha aperta. Em vez de fetichizar a deformidade, a encenação confronta a aversão social à diferença e pergunta quem, afinal, merece ser chamado de humano.
A direção privilegia interiores densos e exteriores de vento frio. O inverno parece permanente, mas há calor em pequenas fogueiras, velas e lamparinas que se multiplicam em cenas de leitura e cuidado. Essas luzes mínimas traduzem a tese emocional do longa: civilização é o que se acende entre dois corpos quando um reconhece o outro como par. O desenho de som acompanha a ideia — passos, tecidos e respirações são mapeados com atenção, e o estalo da eletricidade nunca funciona apenas como efeito; é memória do trauma que abriu a vida.
Do elenco coadjuvante, Christoph Waltz aparece como operador social que lê desejos alheios e os revende; sua presença oferece o cinismo necessário para lembrar que monstros também vestem bons ternos. Ao redor de Victor, médicos disputam prestígio, patronos financiam promessas e curiosos tratam o diferente como atração. Quando a criatura tenta negociar seu lugar, enxerga que a cidade só aceita o que pode domesticar. A palavra “nome” vira disputa central: chamar “criatura” de “homem” exige risco, e poucos se dispõem a assumi-lo.
A narrativa mantém foco nas consequências de cada escolha. O cientista evita responsabilidades e multiplica danos; o ser aprende pela proximidade e paga por cada avanço afetivo. Não há consolo fácil nem punição exemplar, e sim uma contabilidade de atos registrada em pele, voz e silêncio. O filme insiste em perguntas concretas: quem cuida, quem abandona, quem renomeia. Ao encarar essas questões, a obra se firma menos como parábola e mais como drama de convivência, com o coração batendo entre laboratório, rua e casa.
No encontro que dá sentido a tudo, criador e criação dividem um espaço sem fuga, e a imagem abandona o espetáculo para cuidar dos rostos. A ciência, que acendeu a faísca, já não resolve o que ficou vivo. A vela apaga e restam o corpo, o caderno fechado e um quarto que respira no escuro.
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