O mito de voar sempre carregou uma promessa indecente: escapar daquilo que nos prende ao chão, às convenções, às regras, às etiquetas silenciosas que nos ditam como viver. Em “O Homem sem Gravidade”, essa fantasia ganha corpo no momento em que um recém-nascido se recusa, com elegância involuntária, a aceitar o peso do mundo. Não é apenas um bebê que flutua. É um convite para revisitar o desconforto que sentimos diante do que não se ajusta àquilo que definimos como normal. E se o milagre fosse menos extraordinário do que nossa incapacidade de acolhê-lo?
Oscar cresce como um segredo embaralhado entre lençóis pesados e olhares desconfiados. A família tenta domesticá-lo com sacos de areia, como se a singularidade fosse um desvio a ser corrigido. O garoto vive o paradoxo de ser extraordinário e, ao mesmo tempo, uma ameaça ao sossego das aparências. A gravidade, afinal, é muito mais ideológica do que física: ela nos puxa para o centro do que é aceitável, do que convém, do que não provoca perguntas incômodas.
Na adolescência, o amor se infiltra pela fresta do impossível. Agata enxerga em Oscar não o monstro televisivo que o mundo almeja transformar, mas o menino que ainda tenta entender o próprio corpo, e a própria liberdade. Ela funciona como o contraponto vital: o olhar que devolve humanidade ao espetáculo ambulante. Entre os dois, o afeto não flutua. Ele se finca no chão com uma força que a física jamais explicou, mas que qualquer coração reconhece.
Quando Oscar decide se tornar um produto de entretenimento global, a narrativa expõe com clareza uma crítica feroz ao fascínio midiático pelo exótico. A sociedade aclama o herói sem gravidade desde que ele permaneça exatamente onde esperam vê-lo: orbitando o palco, feliz em ser engolido pelo consumismo de suas diferenças. A glória, nesse contexto, tem gosto de enlatado: fácil de vender, indigestamente repetitiva.
A direção aposta na simplicidade visual como estratégia de sedução. Nada de alardes espetaculares: o assombro está na ideia de um corpo indócil em um mundo que exige obediência. Entre guarda-chuvas que criam um céu de pequenos refúgios e ruas que funcionam como passarelas para o improvável, existe um senso de humor delicado sobre a forma como tentamos controlar o incontrolável.
Ao mesmo tempo, há um questionamento ético curioso: por que aquilo que escapa à norma nos amedronta tanto? Oscar poderia ter sido cientista, bombeiro, astronauta, qualquer coisa que ampliasse o sentido prático de sua leveza. Mas a sociedade, sempre tão eficiente em limitar horizontes, empurra-o para o espetáculo, para o rótulo, para a vitrine. Não é apenas ele quem flutua: é a nossa imaginação que continua acorrentada.
Quando o reencontro entre Oscar e Agata enfim se dá, a história se revela em sua verdadeira ambição: falar menos sobre levitação e mais sobre pertencimento. O que mantém alguém no mundo não é o peso do corpo, mas os vínculos que escolhe cultivar. A gravidade afetiva vence o sensacionalismo. E a vida recupera seu sentido mais íntimo: aquele que ninguém consegue medir com instrumentos.
Há um certo desassossego deixado para trás, uma sensação de que outras camadas ficaram por explorar. No entanto, talvez esse vazio seja parte do encanto. Porque o filme arrisca a pergunta que preferimos ignorar: quantos de nós passam a vida inteira tentando ser normais quando, na verdade, nascemos extraordinários?
“O Homem sem Gravidade” suaviza a dureza do mundo com uma fantasia que recusa a grandiloquência, mas carrega uma densidade emocional nada leviana. E se o verdadeiro milagre não estiver em desafiar a gravidade, mas em encontrar alguém disposto a flutuar ao nosso lado?
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