Há algo deliciosamente anacrônico em assistir “Razão e Sensibilidade” hoje, como se abríssemos uma janela para um mundo em que a emoção usava espartilho e o decoro ditava até o ritmo das lágrimas. O filme de Ang Lee, com roteiro de Emma Thompson, não é apenas uma adaptação fiel de Jane Austen: é um duelo refinado entre a contenção e o desvario, entre o que se sente e o que se ousa dizer. E talvez seja justamente essa tensão, essa hesitação entre o que pulsa e o que se permite, que faz dele um dos retratos mais humanos já filmados sobre a linguagem do afeto.
Austen sempre foi uma ironista disfarçada de moralista. Quem lê suas heroínas com olhos contemporâneos percebe que suas histórias de casamento são, na verdade, manuais de sobrevivência feminina em um tabuleiro dominado por homens de fortuna. Thompson entende isso com precisão cirúrgica, mas substitui a ironia aristocrática de Austen por uma compaixão madura, algo mais próximo de quem já viveu as decepções que a autora apenas previa. Elinor Dashwood, interpretada pela própria Thompson, é uma mulher que sente profundamente, mas negocia cada emoção com a razão de quem sabe o preço de perder o controle. Já Marianne (Kate Winslet, em seu primeiro grande voo) é o oposto: ama com febre, fala demais, e confunde a intensidade com destino. São duas faces de um mesmo dilema feminino que ainda resiste ao tempo, entre o que o coração grita e o que o mundo autoriza.
O olhar de Ang Lee empresta à Inglaterra vitoriana uma melancolia oriental: cada plano é uma pintura de silêncios, cada gesto é um ritual de repressão estética. É curioso como o diretor taiwanês transforma o campo inglês em algo quase zen, onde a quietude é uma forma de discurso. E é nesse silêncio que o filme alcança o sublime. A cena em que Edward Ferrars (Hugh Grant, no papel mais contido de sua carreira) interrompe uma declaração com a palavra “education”, quando esperávamos “feelings”, é uma aula sobre o poder da linguagem em Austen: o amor existe, mas só é legítimo se conjugado com a prudência. O rosto de Thompson nesse instante, devastado e contido, é mais eloquente que qualquer discurso feminista.
Mas o verdadeiro milagre do filme está na escrita. Thompson, ao adaptar Austen, cria um diálogo entre séculos. Ela não tenta modernizar a autora; antes, a traduz para um idioma emocional que o público contemporâneo ainda entende, a espera, a recusa, o orgulho ferido, o amor que não pode ser dito. Há momentos em que o texto se desvia do livro para atingir uma verdade maior: a cena de Marianne doente, resgatada nos braços de Brandon (Alan Rickman), é pura invenção da roteirista, e paradoxalmente, é quando o filme se torna mais fiel ao espírito de Austen, o amor não é conquista, é redenção.
A perfeição estética, figurinos, música, direção de arte, serve aqui apenas como cortina para o que realmente importa: a palavra. Austen sabia que tudo começa e termina nela. Promessas, mal-entendidos, juras e silêncios são armas de destruição afetiva em seu universo. E é por isso que Razão e Sensibilidade continua atual: ele fala de um tempo em que as mulheres precisavam escrever cartas para não enlouquecer, mas soa estranhamente próximo de uma era em que digitamos mensagens que nunca enviamos.
O filme não celebra o casamento, mas a coragem de sentir, mesmo quando o sentimento não cabe nas regras do jogo. Ang Lee e Thompson criaram algo raro: um melodrama que pensa, um romance que raciocina. E, entre a sensatez e a vertigem, Austen sorri do além, satisfeita em ver que, dois séculos depois, ainda tentamos equilibrar o coração e a etiqueta, e seguimos falhando lindamente.
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