A lógica do absurdo: por que obra com Joaquim Phoenix, na Netflix, é o melhor filme niilista que você ainda não viu Divulgação / Sony Pictures

A lógica do absurdo: por que obra com Joaquim Phoenix, na Netflix, é o melhor filme niilista que você ainda não viu

Woody Allen talvez seja o último romântico do niilismo. Em “O Homem Irracional”, ele se diverte, e se confessa, na pele de um filósofo atolado em angústia, cuja lucidez virou anestesia. Abe Lucas, vivido por Joaquin Phoenix, é um professor que carrega na barriga o peso de suas dúvidas existenciais e na mente a insolência de quem leu demais para acreditar em qualquer salvação. É um homem que teoriza a impotência até que o acaso, um assassinato ouvido por acaso num café, o devolve à sensação de estar vivo. A ironia é clara: só o crime dá sentido à sua moral adormecida. Allen parece sugerir que, quando o pensamento se esgota, resta à carne agir, e nem sempre com ética.

A trama se disfarça de comédia leve, mas logo revela a perversão intelectual de quem confunde o raciocínio com o álibi. O protagonista, que ensina Kant de ressaca e cita Kierkegaard entre goles de bourbon, encarna o cansaço de uma geração que trocou o engajamento por uma melancolia performática. Emma Stone, como a aluna que o idealiza, é a centelha de ingenuidade que acende a ruína. A relação entre eles nunca é amorosa de fato, é epistemológica: ela quer compreendê-lo, ele quer sentir algo, qualquer coisa que justifique o próprio tédio. Nesse encontro entre eros e abismo, Allen injeta uma tensão moral que só ele domina, a de transformar dilemas éticos em piadas de salão.

Mas há algo mais ácido sob essa superfície elegante. O filme brinca com o suspense à moda Hitchcock, sem a precisão obsessiva do mestre, e prefere o desconforto da ambiguidade. A câmera acompanha Abe como quem observa um animal tentando raciocinar sobre o próprio instinto. O assassinato, planejado como exercício filosófico, vira um tipo de fé moderna, irracional, clandestina, quase mística. Allen constrói o crime como uma parábola sobre a ausência de sentido, e Phoenix o interpreta com um desleixo genial, como se cada gesto dele dissesse: “Penso, logo não existo”. A filosofia, aqui, é o veneno e o antídoto.

Há ecos de “Crimes e Pecados” e “Match Point”, mas “O Homem Irracional” opera num registro mais íntimo, quase confessionário. É o terceiro movimento de uma trilogia não declarada sobre culpa, acaso e punição, um Dostoiévski filtrado por jazz. O moralismo nunca é exposto; ele se insinua nos diálogos, no corpo pesado de Abe, na beleza distraída de Jill, na câmera que se diverte em condenar e absolver ao mesmo tempo. Allen parece rir de si mesmo, de seu vício em transformar dilemas éticos em roteiros de domingo, mas também confessa que já não há filosofia possível para o desejo.

Resta o riso, não o riso de quem entende, mas o de quem se entrega à incoerência. “O Homem Irracional” não é um grande filme, mas é um filme profundamente honesto: Allen, aos 79, já não quer convencer ninguém. Quer apenas jogar mais uma vez o dado da existência e rir do resultado. E nós, espectadores, rimos com ele, não porque a piada é boa, mas porque é terrivelmente verdadeira.

Filme: O Homem Irracional
Diretor: Woody Allen
Ano: 2015
Gênero: Comédia/Crime/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★