A cidade amanhece com cheiro de ferro; em Santa Tereza, telha antiga pinga devagar e uma caixa de som na janela repassa melodias de outras décadas. Ele nasceu por aqui, 1952, Belo Horizonte: Salomão Borges Filho, Lô Borges, passos leves, ouvido obstinado. O pai carrega o peso diário da casa, a mãe regula o fogão pelo tique do relógio; o violão chega cedo e fica, encostado na parede, guardando o quarto. Na outra margem do tempo, 1972 ainda vibra: dois meninos na capa de terra crua, país rígido, uma turma que costurou bossa, guitarras, vozes em coro; dessas esquinas saíram trilhos invisíveis que ensinaram a escuta do Brasil. Hoje, segunda, 3 de novembro de 2025, Belo Horizonte espalha a notícia da morte aos setenta e três; janelas se fecham um pouco, alguém sussurra “O trem azul” e, por um instante, a cidade respira devagar para que as cordas retomem, no escuro, o contorno do mundo.
Cresceu em ruas onde a conversa tinha ritmo, os quintais falavam em tom menor, os vizinhos inventavam melodias sem saber. Entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970, quando decretos noturnos estreitavam a rua e muitos guardavam a voz, os Beatles caíram no colo de uma geração que descobria harmonia sob luz baixa. A rádio ensinava caminhos. Ele anotava mentalmente os encaixes, a boa queda das notas, o espaço entre uma palavra e outra que deixa respirar. A adolescência pediu amigos com ouvido parecido. Apareceram Milton Nascimento, Beto Guedes, Toninho Horta; mais adiante, Wagner Tiso. A turma entendia o mesmo chamado: tirar beleza do cotidiano, sem brado.
Nos primeiros anos da década de 1970, enquanto a repressão apertava, uma casa em Santa Tereza virou ponto de encontro. Gente jovem, horários trocados, arranjos que nasciam à mesa, cadernos rabiscados, visitas que traziam uma linha melódica e iam embora tarde. Foi ali que uma obra coletiva ganhou forma, sem diploma de proclama. Em 1972, “Clube da Esquina” chegou ao vinil com força de mapa. A capa de Cafi, dois garotos sentados na terra crua, parecia explicar uma geografia afetiva. No estúdio havia sobreposições discretas: a bossa se cruzava com guitarras, os sopros lembravam jazz, as vozes de apoio sustentavam e depois sumiam. Ninguém tinha resposta para o país; ofereceram uma escuta.
No mesmo ano, ele atravessou a rua e lançou o próprio disco. “Lô Borges”, capa de tênis surrado, assunto de prateleira que não entrega o que guardava. Canções curtas, pontuais, um clarão adolescente com desenho harmônico maduro. “O trem azul”, “Paisagem da janela”, “Um girassol da cor do seu cabelo”, “Para Lennon e McCartney”. Títulos que viraram senhas. Raio de sol entrando no quarto, poeira dançando na faixa de luz, o violão marcando o passo. A voz não mendiga atenção; ocupa o ar com firmeza mansa. O país, mesmo distante, aprendia que delicadeza também é forma de insistência.
Depois veio um silêncio escolhido. Alguns anos de trilhas laterais, idas e voltas, o rumor bom de quem recusa o centro do salão. Chegaram décadas com discos revisitados e parcerias que respiravam memória e risco. Em vez de repetir fórmula, perseguiu a mesma precisão com outros utensílios. Na virada do século, ele apareceu de novo com fôlego: encontros com Samuel Rosa, com Nando Reis, com amigos antigos. O palco recebeu um compositor menos ansioso, um artesão de timbres que não precisava provar ponto.
Entre 2019 e 2024, manteve um passo surpreendente e regular. Lançou inéditas com parceiros diferentes, faixas que abriam portinhas dentro do repertório conhecido. “Rio da Lua” com Nelson Angelo, “Dínamo” com Makely Ka, “Muito Além do Fim” com Márcio Borges, “Chama Viva” com Patrícia Maês, “Não Me Espere na Estação”. Não havia corrida; havia ritmo de ofício, com a mesa arrumada, o caderno com linhas, a manhã reservada para ouvir o que o corpo já traz. Esses discos recentes não imitam a juventude; amadurecem a mesma escuta.

O reconhecimento encontrou tempo. Em 2023, a indicação ao Grammy Latino por “Não Me Espere na Estação” funcionou como janela aberta para fora, mas o que contava era outra coisa. Plateias de idades diferentes se viram tocadas por curvas harmônicas que não pedem explicação. O Brasil ouviu no repertório de Lô uma educação sentimental sem moralismo, um jeito de atravessar a dureza com arranjo e melodia. As gravações de outros artistas confirmaram esse alcance: Elis Regina, Milton, novas bandas, cantores de voz limpa que entenderam de onde vinha a linha do baixo e o desenho da guitarra. A permanência, nesse caso, dispensou etiqueta.
O estilo dele vive de três elementos simples. Um violão com tensão certa, sem desperdício; uma harmonia que se move alguns milímetros e produz mudança real; uma voz que prefere temperatura morna. No texto, imagens nítidas: coisas de casa, trem, janela, planta, rua. Quando as letras se aproximam do enigma, não perdem o chão. O ouvinte reconhece o objeto antes de tocar. Esse reconhecimento convoca uma emoção específica, modesta e insistente. Fica. Volta num assobio sem dono. Mantém unida a memória de épocas distintas.
A história pessoal, inevitável, voltou à primeira página no fim de 2025. Em outubro, a internação em Belo Horizonte, quadro grave. Procedimentos em cadeia. Familiares próximos, boletins curtos, amigos atentos. O país acompanhou no modo que a internet impõe: notícia quebrada, palpite, cuidado, ansiedade. Ele morreu aos setenta e três, no domingo, 2 de novembro; a confirmação rodou na manhã do dia seguinte, segunda, 3 de novembro. Nas casas, rádios antigos reacenderam, playlists novas devolveram ao cotidiano uma cadência conhecida. A ausência não ocupou espaço vazio; moldou silêncio.
Quando se pensa na influência, a lista se alonga. Guitarristas aprenderam a reduzir o gesto, tecladistas baixaram o volume para deixar espaço, cantores entenderam que timbre pode ser ideia, não enfeite. Produtores aplicaram nos arranjos uma economia que amplifica. Jovens compositores, em apartamentos de cidades que não existiam na cabeça de 1972, descobriram o caminho de volta por meio de discos reeditados, documentários, falas esparsas. O traço comum não está num acorde específico. Está na ética do detalhe, na recusa do excesso, na fidelidade àquilo que acontece quando alguém se senta e escuta a própria mão tocando.
A importância nunca precisou de grito. A turma mineira deslocou o centro de gravidade da música brasileira. Deu ar a harmonias complexas, tratou a eletrificação como ferramenta; mostrou que requinte cabe no quintal e que a vizinhança pode falar ao mundo. O foco de 1972 irradia e, meio século depois, ainda sustenta leitura: “Clube da Esquina” atravessou gerações, “Lô Borges” manteve o clarão inaugural. Entre reedições, livros e filmes, o país foi refazendo a própria escuta com paciência.
A influência se alonga no cotidiano: guitarristas que reduziram o gesto, tecladistas que abriram espaço, cantores que trataram timbre como ideia. Produtores passaram a apostar em economia que amplia. Jovens de hoje chegam por caminhos novos — streaming, documentários, caixas de vinil — e encontram as mesmas curvas melódicas; reconhecem nelas um modo de atravessar dias difíceis. De “O trem azul” a “Paisagem da janela”, o repertório se mantém ativo, não como lembrança, mas como prática.
Na manhã de segunda, 3 de novembro de 2025, a notícia correu por rádios, portais e grupos de mensagem. Vieram notas breves, retratos de 1972, vídeos de palco recente; Belo Horizonte registrou a despedida com a sobriedade de quem guarda um de casa. Um ciclo se fechou no papel timbrado, não na memória: a obra segue disponível, em vinis cuidados, em plataformas, em partituras caseiras que circulam entre amigos.
Ele morreu em Belo Horizonte no domingo, 2 de novembro, aos setenta e três; a confirmação veio no dia seguinte, segunda, 3 de novembro. Escreve-se a data, guarda-se o lugar. O resto continua em escuta.
