O filme que vai aquecer seu coração e ser terapia para sua mente, na Netflix

O filme que vai aquecer seu coração e ser terapia para sua mente, na Netflix

Há personagens que parecem ter nascido de uma colisão frontal entre o instinto de sobrevivência e a absoluta falta de direção. Tallulah (Elliot Page) é uma dessas criaturas errantes que o mundo insiste em empurrar para os cantos menos iluminados. Ela vive como se o chão fosse lava e permanecer em qualquer lugar representasse um risco maior do que vagar sem destino. Um nomadismo sem glamour, sem “road trip de autoconhecimento” patrocinada pela indústria cultural, apenas o desespero diário de quem não cabe em lugar algum. E é justamente dessa inadequação que nasce o ponto de ignição: ao invadir, por acaso, o universo estéril de uma mãe incapaz de reconhecer a existência da própria filha, Tallulah decide que pode ser menos pior do que aquilo.

Não há heroína aqui. Há pessoas tentando. E fracassando. O filme, que leva o nome da protagonista, se recusa a transformar a maternidade em santificação automática, como se parir bastasse para atingir sabedoria transcendental. A mãe festeira, afogada em insegurança e álcool, não é apresentada como vilã, mas como mais um corpo esmagado pela exigência social de ser perfeita enquanto mal consegue ser funcional. Tallulah, por sua vez, não tem a mínima ideia do que significa cuidar de alguém, talvez porque nunca tenha sido efetivamente cuidada. O que ela faz ao sequestrar o bebê é uma declaração desesperada de humanidade: se ninguém permanece por ela, ao menos ela pode permanecer por alguém.

É nesse gesto torto que Margo entra em cena, não como salvadora, mas como outro caso clínico de afeto falido. Traída em um casamento que virou piada interna do patriarcado, ela se esconde atrás de ironias, discursos corretos e falsa superioridade moral. A presença de Tallulah a obriga a sair de sua fortaleza emocional, onde o ressentimento é rei. O encontro dessas duas mulheres, tão distintas e igualmente fraturadas, forma o núcleo mais instigante do filme: uma maternidade improvisada, feita de tropeços, acordos silenciosos e mágoas antigas que insistem em exigir palco.

O grande mérito da direção de Sian Heder está em não oferecer atalhos narrativos. Cada decisão é acompanhada de consequências reais, e o filme recusa a armadilha fácil da redenção hollywoodiana. Tallulah não se transforma em exemplo, Margo não se ilumina magicamente, e a mãe biológica não é punida para que o público se sinta confortável. A vida segue sua entropia: ninguém recebe o que quer, mas alguns descobrem que podem lidar com o que têm. Esse realismo emocional, quase incômodo, tensiona a trama sem nunca ceder à caricatura.

A química entre Elliot Page e Allison Janney dispensa malabarismos dramáticos. Elas expressam o que muitas personagens femininas raramente recebem espaço para revelar: ambivalência. Não existe uma luta entre “boas” e “más” mães, mas a crônica honesta da tentativa, às vezes criminosa, de não repetir os erros que nos formaram. As falas são afiadas, mas as entrelinhas são as que realmente machucam: o abandono gera continuidade, não fim. O cuidado, quando surge, é mais batalha do que bênção.

E quando o filme flerta com metáforas visuais, uma personagem em queda livre, por exemplo, ele não busca poesia artificial, e sim o retrato direto da vertigem de existir. Tallulah suspensa no ar não é ilustração onírica: é diagnóstico de uma geração que herdou responsabilidades impossíveis e afetos em ruínas. Tomar um bebê no colo, ainda que sem autorização, torna-se a única forma de sentir o próprio corpo ocupar espaço.

A lição do filme é a constatação desconfortável de que ninguém está realmente pronto para criar outra vida. Alguns apenas têm mais prática em disfarçar o pânico. Tallulah não resolve problemas: ela escancara que, diante da precariedade emocional universal, qualquer gesto de cuidado já é uma revolução íntima. A pergunta que fica latejando é simples, mas devastadora: se amar é sempre um risco, o que acontece quando parar de tentar passa a ser ainda pior?

Filme: Tallulah
Diretor: Sian Heder
Ano: 2016
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★