Em “Éden”, um pequeno grupo decide deixar cidades e convenções para habitar uma ilha remota no Pacífico, durante a década de 1930. A mudança nasce de desejos variados: há quem busque liberdade de costumes, quem queira provar teorias sobre vida simples, quem apenas procure paz para criar os filhos. A viagem parece curta diante do que os espera: solo duro, água limitada, calor constante e noites que exigem planejamento de cada passo. As primeiras semanas soam promissoras. Trabalham, constroem abrigos provisórios, definem horários e procuram sementes que possam vingar. O tempo trata de testar esse entusiasmo quando tarefas básicas — cozinhar, buscar água, cuidar dos doentes — passam a disputar forças com ressentimentos e ambições.
“Éden”, dirigido por Ron Howard, tem Jude Law, Ana de Armas, Vanessa Kirby, Sydney Sweeney e Daniel Brühl no elenco. Inspirado em fatos documentados nas ilhas Galápagos, o longa acompanha a formação de uma comunidade improvisada que tenta conciliar sonhos privados com a administração de um lugar hostil. A produção recua de gestos grandiloquentes e prefere concentrar atenção no que dá trabalho real: quem acorda primeiro, quem guarda ferramentas, quem insiste em estabelecer regras quando o corpo pede descanso. A partir dessas escolhas, as diferenças de temperamento ganham relevo e transformam a vida coletiva em uma sequência de negociações.
O enredo avança por decisões práticas, sempre atravessadas por disputas por voz e reconhecimento. O personagem de Jude Law, médico e referência técnica, propõe rotinas de cuidado e higiene que prometem reduzir riscos. A figura interpretada por Ana de Armas se apresenta com carisma e senso de oportunidade, mobilizando simpatias e desconfianças ao mesmo tempo. Vanessa Kirby trabalha gestos de proteção e cálculo afetivo diante de um cenário que muda a cada dia. Daniel Brühl representa a pressão de garantir segurança e comida sem perder dignidade. Sydney Sweeney expõe o custo de sustentar esperança quando a rotina cobra renúncias acumuladas. Esses focos não anulam o coletivo; apenas o tornam legíveis, mostrando de onde partem convergências e onde nascem disputas.
A paisagem não é mero cartão-postal. O sol impõe horários, o vento redefine caminhos, e a água doce vira assunto central de toda reunião. O som de madeira que cede, de baldes roçando pedra e de passos abertos na areia compõe cenário em que o cansaço tem forma. Se a chuva atrasa, o humor desanda. Com precipitação forte, o trabalho dobra. A cada frente de trabalho — horta, captação, cozinha — correspondem interesses e status. Alguns se destacam pelo esforço; outros pela capacidade de convencer; alguns pelo controle de informações. A justiça do grupo, sem lei externa, nasce dessas relações e se transforma sempre que um improviso dá errado.
O filme observa como a linguagem muda com a escassez. Palavras como mérito, necessidade e sorte deixam de soar abstratas e viram moeda de troca. A quem se entrega a porção extra quando alguém adoece? Uma família com criança tem prioridade no descanso? A jovem que foi ao limite no mutirão recebe folga no dia seguinte? Não há respostas automáticas. A cada decisão, um argumento ganha terreno e outro perde. O que parecia consenso na semana anterior volta à mesa diante de um imprevisto, e ninguém quer carregar a culpa pelo erro que custará água, comida ou saúde.
A atuação do elenco evita rótulos fáceis. Ninguém nasce herói nem vilão. O médico com convicções firmes descobre que competência não compra adesão integral. A liderança carismática que se autoproclama guardiã de uma nova liberdade entende que lealdade precisa de prova diária. O casal decidido a manter rotina se vê obrigado a revisar promessas diante de mudanças climáticas e de pressões internas. A jovem que tenta participar em pé de igualdade percebe que a assembleia distribui crédito com critérios irregulares. Essas trajetórias compõem retrato de uma comunidade que negocia o presente enquanto tenta preservar algum futuro.
A direção de Ron Howard prefere clareza espacial a truques. A câmera mantém distância suficiente para que o público entenda quem está onde, quais pontos de água estão acessíveis e que rotas de circulação são viáveis quando o calor aperta. Essa legibilidade dá peso a escolhas simples: deixar um balde ao relento pode significar perder uma tarde de trabalho. O uso contido de música ajuda a preservar o sentido de risco cotidiano, sem empurrar emoções. Quando a trilha entra, a entrada tem função identificável: marcar cansaço acumulado, sublinhar um acordo temporário, evidenciar que alguém se isolou além do razoável.
O ritmo privilegia persistência, não explosões. Pequenas humilhações ficam guardadas. Olhares pesam mais que discursos. A cada encontro, a memória recente reorganiza blocos de afinidade. A visita de forasteiros, quando acontece, altera prioridades e acende suspeitas sobre relatos passados. Nessa lógica, o filme mostra como a versão vencedora de um fato depende de quem guarda as chaves do depósito, de quem domina os remédios, de quem fala por último nas reuniões noturnas. A verdade, ali, precisa atravessar cansaço, fome e vontade de manter influência.
O roteiro valoriza a mecânica do trabalho, algo raro no retrato de comunidades idealizadas. Plantar, colher, consertar, vigiar: tudo aparece com duração suficiente para se tornar crível. Essa insistência dá dimensão de realidade a discussões que, em outras narrativas, ficariam no plano teórico. Quando se debate distribuição de alimentos, o espectador já viu o esforço necessário para colocar uma refeição no fogo. Quando se questiona o tempo dedicado a um abrigo específico, a imagem do material carregado no braço ainda está na cabeça. Esse acúmulo confere densidade às escolhas e evita que as pessoas virem slogans ambulantes.
Há um comentário social claro: a tentativa de começar do zero não apaga hierarquias aprendidas. O gesto de mandar reaparece, ainda que troque de dono. O medo de perder espaço se camufla de zelo. A palavra igualdade se desgasta quando a prática cobra renúncias assimétricas. A ilha prometida como refúgio se converte em espelho ampliado de disputas não resolvidas antes do embarque. Essa percepção não anula o afeto que, vez ou outra, cria pequenos pactos de cuidado, mas indica que a convivência custa energia e tempo que poderiam estar dedicados a plantar, reparar ou dormir.
As próximas decisões dependem de condições mensuráveis: o nível da água, a resistência das colheitas e a confiança em quem anota cada registro. Entre o desgaste e o desejo de permanência, a comunidade precisa decidir se ainda acredita no projeto que inventou para si. A dúvida sobre liderança permanece como único consenso possível.
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