Um tributo ao cinema — o clássico proibido que a Mubi trouxe de volta Divulgação / Península Films

Um tributo ao cinema — o clássico proibido que a Mubi trouxe de volta

A vidraça estilhaçada da juventude pode refletir múltiplas imagens ao mesmo tempo: o desejo de mudar o mundo e a vontade obstinada de fugir dele; a utopia escrita em panfletos nas ruas e a fantasia erguida entre lençóis, onde nenhuma revolução precisa ser sangrenta. Nesse intervalo entre a história e o hedonismo, existe um apartamento parisiense que parece suspenso no tempo. Um refúgio onde três jovens acreditam ter encontrado a fórmula secreta para permanecer eternos enquanto o caos lá fora ameaça derrubar tudo que foi prometido.

Bernardo Bertolucci constrói ali uma fábula íntima sobre a crença ingênua de que a vida pode ser guiada por referências cinematográficas e que as grandes verdades estão nas falas de filmes amados. Os três protagonistas, submersos em tributos apaixonados à arte que os formou, confundem realidade com tela de cinema, como se fosse possível derrotar a inevitável passagem do tempo repetindo gestos icônicos da Nouvelle Vague. O que os move não é a política que arde nas ruas, mas uma paixão obsessiva pelo ideal de um mundo onde tudo pode ser reinventado com um toque dramático, como se a vida tivesse sido escrita por roteiristas inspirados.

Mas há rachaduras que nem a cinefilia consegue disfarçar. A relação simbiótica entre os irmãos revela um grau de intimidade que dispensa explicações e desafia a moralidade convencional. O estudante americano que chega para completar o triângulo não estranha: fascina-se. Ele não entra pela porta como um intruso; atravessa um portal para uma dimensão que mistura carinho com perigo, descobertas com destruição. Há algo irresistível naquilo que ofende as regras, sobretudo quando a juventude acredita que transgressão e autenticidade são sinônimos inquestionáveis.

Dentro daquele apartamento, a economia não existe; o alimento parece dispensável; o que importa é manter acesa a chama desse universo privado onde o corpo se torna instrumento político e a nudez assume contornos de libertação. O amor, o prazer, o jogo: tudo ganha intensidade porque está isolado do mundo. Porém, a recusa em produzir qualquer coisa além dos próprios delírios cobra um preço. Quando a garrafa de vinho se esvazia, a revolução chega pela porta da cozinha, sem discurso, sem bandeiras. A realidade interrompe o idílio com uma frontalidade que nenhuma metáfora consegue suavizar.

Há quem enxergue naqueles jovens mártires de um ideal puro, seres que ousaram viver de modo radicalmente livre enquanto o planeta tentava se reconfigurar. Outros os veem como privilegiados que brincam de rebeldia com a despensa cheia, enquanto verdadeiros insurgentes sangram por mudanças concretas lá fora. O filme se diverte tensionando essas interpretações, sem guiar o espectador para nenhuma conclusão confortável. A arte, afinal, jamais se comprometeu a oferecer manuais políticos prontos, ainda mais quando trata de juventudes que se reinventam enquanto erram.

Mesmo quando a fumaça dos confrontos invade o apartamento e o despertar histórico parece inevitável, não existe certeza de que aqueles três aceitarão abrir mão dos próprios delírios. A queda do pedestal idealizado não produz epifanias profundas; apenas expõe como é doloroso constatar que nem todo desejo pode ser sustentado pelo charme da irresponsabilidade. O mundo exige escolhas. A vida adulta não perdoa quem insiste em permanecer refugiado na fantasia.

Ainda assim, há beleza nesse fracasso. Há grandeza no gesto de quem acredita que viver intensamente pode ser uma forma legítima de resistência. Os personagens de Bertolucci não oferecem modelos de conduta nem discursos prontos sobre revolução: eles materializam a fragilidade de quem tenta transformar paixão em ideologia, e descobre que o corpo tem um limite, o dinheiro tem fim e o romance eterno precisa enfrentar o dia seguinte.

O apartamento de “Os Sonhadores” não é apenas um cenário; funciona como útero simbólico, onde desejos nascem sem julgamentos. Quando a rua se torna inevitável, o parto é violento. A história obriga os três a romper com a invencível bolha do prazer permanente. E se o mundo não acolhe quem insiste em viver à margem da produtividade e da marcha das reformas, tampouco a arte se compromete em protegê-los desse colapso emocional.

Talvez o filme provoque tanto fascínio porque exibe, sem filtros, o que muitos tentaram viver e poucos tiveram coragem de admitir: o sonho absoluto de ser jovem para sempre, de ser livre sem negociar nada, de arriscar tudo em nome de um sentimento que poderia justificar cada escolha extrema. E apenas para quem ousa ver permanece uma dúvida incômoda: é o mundo que destrói os sonhadores ou são os sonhadores que escolhem a própria ruína quando percebem que a realidade exige sacrifícios?

Sem didatismos, a narrativa revela que romper com a infância não significa perder a capacidade de imaginar; significa compreender que a imaginação só ganha potência quando se atrela ao que pode ser vivido sem desmoronar no primeiro contato com o real. Esses três jovens tocaram o impossível com as mãos nuas. Pagaram por isso. Mas por alguns instantes, tornaram o impossível palpável, e talvez seja essa a única forma de continuar acreditando que sonhar vale a pena, mesmo quando o mundo insiste em nos acordar com brutalidade.

Filme: Os Sonhadores
Diretor: Bernardo Bertolucci
Ano: 2003
Gênero: Drama/Erótico/Romance
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★