Você vai se emocionar com obra-prima de Steven Spielberg com Anthony Hopkins e Morgan Freeman, na Netflix Divulgação / DreamWorks Distribution

Você vai se emocionar com obra-prima de Steven Spielberg com Anthony Hopkins e Morgan Freeman, na Netflix

Quando a história escolhe revelar a brutalidade do passado, ela não pede licença: apenas nos atropela com sua verdade crua. “Amistad” não se detém em cortesias: nos joga no convés apertado do navio que levou africanos sequestrados de seu continente, nos confronta com o silêncio cúmplice dos observadores e nos obriga a sentir, ainda que desconfortavelmente, a indignação histórica que poucos filmes ousam encarar. Spielberg, nessa narrativa sobre a luta pela liberdade, não se limita a contar eventos; ele insinua, confronta e desorganiza a complacência do espectador, convidando-o a questionar desde a ética até a própria natureza da justiça.

O coração da história pulsa em Cinque (Djimon Hounsou), cuja presença não apenas domina a tela, mas também impõe uma disciplina moral sobre quem assiste. Cada gesto, cada olhar, é carregado de uma dignidade que desafia a banalidade de uma época que reduzia humanos a mercadoria. Ao redor dele, outros personagens oscilam entre a inspiração e a caricatura: McConaughey como advogado mostra uma determinação convincente, mas é Hounsou quem impõe o ritmo emocional; Hopkins oferece uma interpretação segura como John Quincy Adams, mas, novamente, é a intensidade de Cinque que torna impossível desviar o olhar. Freeman, apesar de seu talento inegável, é subutilizado, lembrando-nos de como o cinema muitas vezes subestima a complexidade de figuras secundárias.

O filme não economiza na demonstração da violência estrutural do tráfico de escravos: da captura em terra africana, passando pelo confinamento desumano a bordo de La Amistad, até as negociações frias entre comerciantes, políticos e diplomatas, cada cena constrói uma tapeçaria de horror realista e quase palpável. Spielberg evita a espetacularização gratuita, mesmo nos momentos mais cruéis, não há gore estilizado, apenas a austeridade da realidade. Essa escolha estética não apenas respeita a memória das vítimas, mas intensifica a sensação de opressão, reforçando a urgência do questionamento central: o que é liberdade e quem decide seu valor?

As deficiências do filme, inevitavelmente, se mostram em espaços que exigiriam maior tensão dramática. As sequências de tribunal, por exemplo, sofrem de um ritmo por vezes moroso, faltando-lhes a energia e o suspense que séries televisivas mais recentes conseguem imprimir. Certos elementos da trama política, como a ameaça de guerra civil por parte de Calhoun ou a intriga espanhola envolvendo a jovem rainha Isabella II, parecem inseridos com pressa, como se o roteiro tentasse expandir o alcance histórico sem investir na construção da tensão. Ainda assim, esses deslizes são pequenos frente à força moral e narrativa do longa: a história central sustenta o filme, e cada cena relevante de liberdade ou injustiça brilha com intensidade suficiente para eclipsar as lacunas.

O componente linguístico é um triunfo silencioso. A barreira do idioma entre os africanos e o sistema jurídico americano não apenas enriquece o enredo, mas também simboliza o choque de mundos e a incompreensão institucionalizada. A sequência em que Cinque, finalmente, impõe sua voz e exige liberdade, é mais do que um clímax narrativo: é um gesto de restituição histórica, um lembrete de que a linguagem e a identidade são armas contra a opressão. Spielberg compreende que a tensão moral não depende de diálogos floridos ou reviravoltas artificiais; ela nasce da autenticidade emocional dos personagens.

Visualmente, a obra alterna entre a crueza da embarcação e a solenidade do tribunal, sempre com a câmera de Janusz Kaminski calibrando luz e sombra para ressaltar a gravidade de cada cena. Há momentos de pura poesia, o início com a vida familiar de Cinque, o horror da travessia do Atlântico, que funcionam como contrapontos sensíveis à dureza do drama legal e político. Aqui, o cinema não se limita a contar fatos: ele convida à empatia ativa, obriga a refletir sobre a responsabilidade individual e coletiva em face da injustiça.

“Amistad” é mais do que um filme histórico: é um convite à contemplação crítica da liberdade e da humanidade. Spielberg falha em alguns detalhes estruturais, subaproveita talentos excepcionais e sobrecarrega brevemente a narrativa política, mas acerta em capturar a essência do que significa resistir diante do absurdo. É um filme que provoca, incomoda e, acima de tudo, lembra que certas histórias não podem ser simplificadas ou esquecidas. Ao nos deixar com a imagem de Cinque, imponente e irredutível, o longa conclama o espectador a questionar: se a liberdade é conquistada através da coragem e da resistência, quais seriam hoje os navios que ainda precisamos enfrentar?

Filme: Amistad
Diretor: Steven Spielberg
Ano: 1997
Gênero: Biografia/Drama/História
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★