Baseado em crime real, o suspense espanhol que despontou no TOP 10 da Netflix em 91 países Divulgação / Netflix

Baseado em crime real, o suspense espanhol que despontou no TOP 10 da Netflix em 91 países

“O Jogo da Viúva”, novo filme espanhol da Netflix dirigido por Carlos Sedes, é um estudo meticuloso sobre a banalidade do mal. Inspirado em um caso real ocorrido em Valência em 2017, o longa reconstrói o assassinato de Arturo, um homem comum, morto a facadas no estacionamento de seu prédio, e gradualmente revela a teia de manipulações que o levou à morte. O que começa como uma investigação metódica se transforma num retrato sombrio da capacidade humana de corromper-se por conveniência, desejo ou pura fraqueza.

O filme se divide em três capítulos, cada um narrado da perspectiva de um personagem central. A estrutura fragmentada, longe de servir como truque formal, funciona como lente moral: cada ponto de vista acrescenta uma camada de ambiguidade à noção de culpa. No primeiro segmento, acompanhamos Eva, a investigadora interpretada por Carmen Machi, uma mulher que encara o trabalho policial como se fosse a única zona de ordem possível num mundo em colapso doméstico. Sua vida pessoal, marcada por conflitos com a filha adolescente, espelha o próprio caos que ela tenta controlar nos interrogatórios. Eva carrega uma exaustão silenciosa, uma descrença civilizada, e o filme a trata como a consciência cansada de uma sociedade que ainda finge acreditar em justiça.

O segundo ato mergulha em Maje, a viúva, interpretada por Ivana Baquero. É o trecho mais incômodo, não por suas cenas de crime, mas por sua ausência de emoção. Maje é uma mulher cuja superfície é toda controle: voz mansa, gestos medidos, expressão impenetrável. Não há fúria nem arrependimento, apenas cálculo. Sedes não tenta transformá-la em uma figura sedutora nem em um monstro; ele a filma como alguém que internalizou a lógica utilitária ao extremo, para quem o outro é apenas um instrumento. Ela manipula Salva, colega de trabalho emocionalmente frágil, até convencê-lo a cometer o assassinato de seu marido. A motivação não é paixão, tampouco dinheiro, é poder, em sua forma mais primária: o prazer de dobrar alguém à própria vontade.

É em Salva que o filme encontra sua verdadeira tragédia moral. Homem comum, com uma vida medíocre e desejos simples, ele representa o elo fraco que torna possível o mal em larga escala. Raúl Prieto o interpreta com uma docilidade patética: ele não é perverso, é submisso; não é cruel, é covarde. Quando mata Arturo, o faz não por ódio, mas por medo de perder a atenção de Maje, uma forma de servidão sentimental que o reduz a instrumento. A banalidade de seu gesto é o que mais perturba. Sedes não romantiza esse ponto; ao contrário, filma a cena do crime sem glamour, sem trilha sonora, como se fosse apenas mais um ato burocrático da degradação humana.

“O Jogo da Viúva” se afasta dos clichês do thriller e prefere a observação paciente do comportamento. A fotografia fria, quase clínica, reforça a sensação de distanciamento moral, enquanto o ritmo pausado permite que o espectador perceba o horror não no ato violento, mas nas justificativas cotidianas que o precedem. Não há reviravoltas grandiosas nem catarses: há apenas o lento desmoronar das ilusões que sustentam cada personagem, a de Eva na ideia de justiça, a de Salva no amor, a de Maje no controle.

O filme também é um retrato lúcido do ambiente social espanhol contemporâneo, onde a crise de valores se manifesta não por meio de ideologias, mas de fadiga ética. Todos os personagens vivem um tipo de esgotamento: o policial, o trabalhador comum, a mulher entediada que transforma a manipulação em distração. Sedes parece sugerir que o verdadeiro crime é o vazio, o tédio que transforma a vida em repetição e a moral em mero acessório. “O Jogo da Viúva” é uma espécie de um estudo filosófico sobre a decadência do cotidiano do que de um suspense policial tradicional.

Há uma ironia amarga em seu título: o “jogo” nunca é de fato jogado. Não há estratégia ou inteligência diabólica; há apenas impulsos pequenos, quase ridículos, que resultam em tragédia. A trama, vista sob essa ótica, desmonta a narrativa mitificada do crime passional e expõe o que ela realmente é, um produto da solidão e da mediocridade afetiva. Sedes filma esses personagens sem piedade, mas também sem moralismo. Ele entende que o mal raramente se manifesta em grandes gestos; ele se infiltra nos silêncios, nos olhares que evitam o confronto, nas pequenas concessões diárias que acabam por corromper o todo.

Quando o filme chega à sua conclusão, previsível, mas inevitável, o sentimento não é de justiça, mas de exaustão. “O Jogo da Viúva” termina sem explosões, sem moral final, apenas com o peso de uma verdade incômoda: o horror raramente é extraordinário. Ele nasce de pessoas comuns que, por covardia ou vaidade, renunciam à própria consciência. Carlos Sedes constrói, assim, um filme de sobriedade e clareza moral raras. “O Jogo da Viúva” não pretende nos entreter, ele nos observa e nos obriga a encarar o quanto de Salva, de Maje ou de Eva talvez exista em cada um de nós.

Filme: Jogo da Viúva
Diretor: Carlos Sedes
Ano: 2025
Gênero: Crime/Drama/Mistério
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.