Em “Hospedeira”, o horror não é um espectro que vem de fora, ele nasce do confinamento. Uma ilha, um internato e uma hierarquia implacável: eis o triângulo perfeito para o terror. A diretora tailandesa Pokpong-Pairach Khumwan entende que o medo, antes de ser uma presença sobrenatural, é uma gramática social. Sua protagonista, Ing, é enviada a um colégio de “reforma”, palavra que aqui soa mais como ameaça que como promessa. O isolamento é a ferramenta do controle, e a obediência, sua liturgia. O filme não fala apenas sobre fantasmas: fala sobre o que resta de humano quando o poder decide o que é pureza e o que é punição.
O espectro que assombra Ing é a Mae Sue, o espírito guardião dos recém-nascidos, reimaginado aqui como uma espécie de mãe simbólica que protege e destrói ao mesmo tempo. A lenda, que nasce do folclore tailandês, funciona como metáfora de um afeto doente: aquele que sufoca em nome da proteção. Ing é perseguida por uma entidade que diz querer o seu bem, da mesma forma que a instituição alega estar “educando” suas alunas. É a velha pedagogia do medo, a mesma que move escolas autoritárias, governos paternalistas e até certas religiões que prometem salvação à custa da docilidade. O filme é, portanto, uma crítica disfarçada: a obediência imposta como forma de pureza é apenas mais uma encenação do poder.
O horror aqui é quase político em sua estética. Não há mansões vitorianas nem freiras demoníacas, mas dormitórios abafados, uniformes idênticos e rostos que se confundem. A repetição é o primeiro sintoma da opressão: todas se parecem, todas fingem ser boas. Khumwan filma esse ambiente com uma frieza que lembra o realismo cruel das fábulas morais, onde o sangue não choca, apenas confirma o inevitável. A violência, sempre implícita antes de ser explícita, vai se acumulando até que o sobrenatural deixa de ser alucinação: ele se torna um espelho. Quando Ing começa a reagir, não sabemos mais se ela está sendo possuída ou apenas despertando para o próprio ódio.
Há algo profundamente feminino nessa relação entre o trauma e o retorno. O filme sugere que as meninas da ilha vivem em um eterno ciclo de culpa herdada: a maternidade forçada da Mae Sue é uma prisão, mas também uma forma de vingança. As mulheres são educadas para proteger, mesmo que isso custe a própria sanidade. Quando Ing finalmente decide romper com o espírito, é tarde demais, já não há fronteira entre vítima e monstro. A mitologia do cuidado se inverte: a guardiã vira algoz, a protegida se torna destruidora. E o horror, no fundo, é perceber que ambas desejavam o mesmo: liberdade.
“Hospedeira” funciona como uma alegoria sobre os sistemas que domesticam mulheres sob o pretexto de salvá-las. A escola é o microcosmo de uma sociedade que exige submissão disfarçada de amor. O fantasma, nesse caso, é o instinto de revolta que a estrutura tenta exorcizar. E Khumwan, com notável domínio de atmosfera, faz do folclore uma arma contra o esquecimento, lembrando que todo mito nasce do medo de perder o controle sobre quem se quer dominar. A ilha não é o cenário, mas a metáfora perfeita para o isolamento feminino: um lugar onde a liberdade é sempre um rumor e o castigo, uma herança.
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