Comédia romântica com Meg Ryan e Hugh Jackman é a pausa que você precisa das preocupações, na Netflix Divulgação / Miramax

Comédia romântica com Meg Ryan e Hugh Jackman é a pausa que você precisa das preocupações, na Netflix

Dirigido por James Mangold no início dos anos 2000, “Kate & Leopold” combina o charme da comédia romântica tradicional com o artifício da ficção científica, num flerte improvável entre o amor e a viagem no tempo. A princípio, a premissa soa tão fantasiosa que poderia desabar sob o peso do próprio clichê: um duque do século 19, transportado acidentalmente para a Nova York contemporânea, apaixona-se por uma executiva cética e pragmática. Mas o que poderia ser apenas uma farsa açucarada revela, nas entrelinhas, uma sátira delicada, uma espécie de espelho invertido sobre a modernidade e suas ilusões afetivas.

Hugh Jackman interpreta Leopold, aristocrata desajustado que atravessa o tempo não apenas como um corpo deslocado, mas como um símbolo de um ideal romântico em extinção. Sua polidez, suas frases cerimoniosas e seu olhar atônito diante da pressa metropolitana transformam o personagem num fantasma da elegância perdida. Já Kate (Meg Ryan), figura típica do início do milênio: executiva eficiente, emocionalmente blindada e permanentemente exausta, encarna o oposto: a mulher moldada pela produtividade, que confunde autonomia com isolamento. A relação entre os dois, portanto, não é apenas um enredo amoroso; é uma colisão entre tempos, linguagens e valores, onde o afeto tenta sobreviver à lógica do desempenho.

O humor do filme nasce justamente desse atrito entre o cavalheirismo anacrônico e o cinismo contemporâneo. Quando Leopold insiste em abrir portas ou preparar jantares à luz de velas, Kate reage com o desconforto de quem vê um gesto de gentileza como um ataque ideológico. Essa fricção, por mais cômica que pareça, contém um diagnóstico preciso: o romance moderno tornou-se tão pragmático que qualquer gesto gratuito, sem “função” aparente, soa suspeito. Mangold, ao invés de ironizar o passado, sublinha a pobreza afetiva do presente. A viagem no tempo deixa de ser um artifício narrativo para se tornar um experimento emocional: o que resta do amor quando ele é despido de urgência, ironia e pressa?

Visualmente, o contraste entre as eras é resolvido com simplicidade: o esplendor vitoriano cede lugar à urbanidade impessoal dos escritórios e apartamentos contemporâneos. O que o filme sugere, no entanto, é mais do que um contraste de estilos, é o abismo entre duas concepções de tempo. O século 19 de Leopold se move com solenidade e ritual; o século 21 de Kate é movido a ruído e eficiência. Nesse sentido, “Kate & Leopold” pode ser lido como uma parábola sobre o colapso da experiência: o personagem que viaja no tempo é o único capaz de parar e observar, enquanto todos ao seu redor correm sem saber para onde.

O roteiro, por vezes inconsistente na explicação científica de sua fenda temporal, acerta ao priorizar o simbolismo da ideia sobre sua lógica. Não importa como o duque atravessou o portal; importa o que sua presença desloca. O anacronismo se transforma em metáfora daquilo que o mundo moderno tenta enterrar a delicadeza, o gesto, a pausa, o cortejo. Em vez de um simples choque cultural, o filme encena um duelo filosófico: entre o romantismo que acredita na promessa e o pragmatismo que exige garantias.

Se há algo de encantador em “Kate & Leopold”, é justamente a sua recusa em zombar da própria ingenuidade. Mangold não disfarça o anacronismo; ele o celebra. A narrativa é conduzida como uma fábula consciente de seu exagero, e talvez por isso funcione. Hugh Jackman entrega uma performance que transcende o estereótipo do galante sedutor, seu Leopold é simultaneamente caricato e comovente, alguém que vive fora do tempo, mas cuja sinceridade desarma. Já Meg Ryan, ainda no auge de sua persona rom-com, confere à personagem uma rigidez que vai se quebrando lentamente, num arco que revela o cansaço de uma mulher que se acostumou a viver sozinha por medo de ser desacreditada.

O final, alvo de críticas por seu salto abrupto e ilógico, é coerente dentro da lógica interna da fábula: o amor, para existir, exige uma dose de irracionalidade. Quando Kate decide abandonar seu mundo para seguir Leopold de volta ao século 19, a escolha é menos sobre um homem e mais sobre um tempo, um tempo onde o sentimento ainda podia ser uma forma de coragem. Mangold encerra seu filme com um gesto deliberadamente anacrônico: ele devolve ao espectador a fantasia que o cinema moderno insiste em negar, a ideia de que o amor pode desafiar até o tempo.

“Kate & Leopold” é uma comédia romântica que brinca com o impossível sem pedir desculpas por isso. Entre o riso e o devaneio, o filme resgata algo que o século 21 perdeu: a capacidade de se comover com o que é improvável. Sua leveza não esconde o que há de crítico em sua essência, um retrato melancólico de uma era em que a eficiência substituiu o encantamento, e o amor virou um algoritmo. Sob sua superfície açucarada, há uma provocação: talvez o verdadeiro anacronismo não seja o duque deslocado no tempo, mas a ideia de amar em um mundo que já não acredita na delicadeza.

Filme: Kate & Leopold
Diretor: James Mangold
Ano: 2001
Gênero: Comédia/Fantasia/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.