Sátira de uma das maiores obras de Jane Austen é alívio cômico diante da austeridade na vida, na Netflix

Sátira de uma das maiores obras de Jane Austen é alívio cômico diante da austeridade na vida, na Netflix

Há algo de deliciosamente insano na ideia de mesclar o chá das cinco com decapitações. “Orgulho e Preconceito e Zumbis” parte de um impulso que parece nascido de uma noite em que Jane Austen sonhou com George A. Romero e ambos decidiram escrever juntos. O resultado é um híbrido que, a despeito da aparente incongruência, revela o quanto o absurdo pode ser elegante quando se leva a sério demais. É exatamente essa a ironia central: a cortesia inglesa continua intacta mesmo quando há cérebros sendo devorados à mesa.

A direção de Burr Steers assume o desafio de transformar a etiqueta vitoriana em campo de batalha, e o faz com uma convicção que beira o devocional. O filme não é uma simples paródia nem uma sátira desleixada; é um exercício de desvio estético. Ao inserir zumbis em um universo de recato e contenção, Steers fabrica uma espécie de comédia de costumes em que o decoro se torna tão mortal quanto o vírus. O espelho social de Austen permanece ali, apenas coberto por sangue fresco.

Lily James, em versão Elizabeth Bennet caçadora, carrega o arco narrativo com uma mistura de doçura e ferocidade que beira o impossível: ela mata mortos-vivos com a mesma elegância com que declina um convite para dançar. Já Sam Riley transforma Darcy num herói de romance que trocou o florete pela espada, e mantém o mesmo ar de superioridade, como se até os zumbis devessem agradecer por serem eliminados por alguém tão distinto. Entre eles, a química é tão disfuncional quanto irresistível, uma alternância entre insultos e cortes de lâmina que substitui a tensão sexual pelos estilhaços do nonsense.

O humor, aliás, é o elemento que costura o colapso da lógica. Matt Smith, em um estado de graça cômica, interpreta Mr. Collins como um bufão adoravelmente inapto, um sobrevivente não pela força, mas pela absoluta ausência de noção. Ele é o lembrete constante de que o perigo maior talvez não venha dos mortos, mas da insistência britânica em manter a compostura em meio à catástrofe.

A força do filme está justamente na seriedade com que trata o próprio absurdo. A produção aposta em figurinos impecáveis, cenários grandiosos e coreografias de luta filmadas com rigor quase operístico, como se a etiqueta tivesse invadido o campo de batalha. Essa dissonância deliberada sustenta o encanto da narrativa: as irmãs Bennet treinam artes marciais no porão e, ao mesmo tempo, discutem casamentos vantajosos. O que poderia soar como um sketch prolongado ganha consistência pela completa ausência de autocrítica dentro da diegese. Ninguém ali parece achar estranho que o chá esteja sendo servido entre decapitações.

Contudo, há momentos em que o próprio filme se perde na elegância de sua loucura. O ritmo, por vezes, hesita entre o drama de salão e o horror pulp, como se temesse abraçar o ridículo até o fim. É justamente quando tenta ser sério demais que perde o brilho: o grotesco, em “Orgulho e Preconceito e Zumbis”, funciona melhor quando é tratado como herança natural da aristocracia. Afinal, o moralismo austeno-zumbilógico é mais coerente do que parece, tanto as convenções sociais quanto os vírus apodrecem quem não sabe se adaptar.

Os zumbis, curiosamente, são menos monstros do que reflexos. Falam, raciocinam e até se organizam, um eco distorcido da própria sociedade que pretendem destruir. O filme não aprofunda essa ironia, mas a insinuação basta: o verdadeiro apocalipse, aqui, não é a peste, mas a insistência em preservar a etiqueta diante da decomposição. Austen provavelmente sorriria diante dessa sátira involuntária à própria rigidez que seus romances retratavam com tanto esmero.

“Orgulho e Preconceito e Zumbis” é um espetáculo de contradições: refinado e grotesco, contido e absurdo, disciplinado e delirante. É o tipo de filme que se sustenta pelo prazer de ver um universo inteiro mantendo as aparências enquanto tudo desaba, uma metáfora que vai muito além dos mortos-vivos. É possível rir, torcer e, por um instante, acreditar que o mundo pode ser salvo por uma mulher de vestido rendado empunhando uma katana. E se isso não é cinema de costumes em estado puro, então nada mais é.