A luta pela sobrevivência não é apenas física: sobreviver é resistir à fome, mas também ao medo, à perda de identidade e até ao peso das lembranças. É aí que o acaso e a sorte levantam-se como forças que moldam destinos, tornando cada experiência algo singular. Na guerra, os soldados aprendem que a lógica pode ser tanto uma aliada como uma adversária irascível. Obedecer ao instinto pode conduzir a uma vitória redentora e inesperada ou à morte humilhante e implacável. Confrontos bélicos são sempre monstruosos, mas separam os homens em quem se pode confiar de todo o resto.
A história da Europa é profundamente marcada pela guerra, imprescindível na formação de suas sociedades, fronteiras e identidade cultural. Desde as invasões bárbaras que precipitaram a fragorosa queda do Império Romano (27 a.C. — 476 d.C.) até os conflitos feudais na Idade Média (476-1453), a violência foi um elemento que ajudou a estruturar a organização do poder no Velho Mundo. Cada guerra não apenas destruiu, mas também remodelou territórios, forjou alianças e estimulou migrações que, por sua vez, misturaram etnias e sangues. A Guerra dos Cem Anos (1337-1453) mudou a cara da França e da Inglaterra, enquanto as Cruzadas, entre os séculos 11 e 13, promoveram o encontro do Ocidente cristão com o Oriente muçulmano, anunciando o Renascimento, entre meados do século 14 e o fim do século 16.
No período moderno, guerras religiosas dividiram o continente, mas escreveram lições de soberania e tolerância. No século 20, os dois conflitos mundiais não apenas devastaram, mas serviram para catalisar as transformações sociais, tecnológicas e políticas que deram na União Europeia, concebida como resposta ao trauma da destruição. Paradoxalmente, a guerra é uma força disruptiva e, no entanto, criadora, capaz de firmar a complexa tessitura sociocultural que definiu o povo europeu como o conhecemos. Ao longo do tempo, catástrofe foi também oportunidade de mudança e de evolução.
Em tempos de incerteza, as manifestações artísticas são um porto seguro. Mais do que diversão, o cinema transporta o espectador para outras realidades, fazendo-o refletir sobre os eternos dilemas humanos e achar não respostas, porque não é esta a sua obrigação, mas alento diante do cansaço tirânico do dia a dia, das vicissitudes da existência, do crescente mal-estar de tudo. Os combates armados são um assunto que ocorre com alguma frequência nos filmes europeus, malgrado a indústria cinematográfica de além-mar esteja longe de ser apenas isso. É o que comprova nossa lista, com sete produções europeias que espelham o melhor da tela grande no catálogo da Netflix. Se a vida é um campo de batalha, a arte é uma fortaleza.

A guerra é uma fonte perene de absurdos. Só no curso de uma guerra se pode saber até onde vai a capacidade humana de matar, sobretudo inocentes, destruir, subjugar povos inteiros aos arbítrios perversos de um só homem, a quem justiça ou clemência são valores subjetivos demais. Para a guerra e seus senhores, interessa apenas a vitória. O lançamento de bombas contra a Escola Francesa em Copenhague, em 21 de março de 1945, estabelece o limite prático entre a civilização e a barbárie. Claro que para tanto se anunciaram muitos sinais de que mais cedo ou mais tarde a situação sairia do controle, algo corriqueiro em enfrentamentos armados entre blocos de países. O episódio é o mote de “O Bombardeio” (2021), do diretor dinamarquês Ole Bornedal, que se debruça sobre a história com intimidade. O pano de fundo, em que Bornedal apresenta o envolvimento romântico do combatente nazista Frederik, vivido por Alex Høgh Andersen, e a noviça Teresa, interpretada por sua filha, Fanny Bornedal, se presta a uma forma didática de abordar a guerra no país. Invadida pelos alemães em 9 de abril de 1940, a Dinamarca atravessou um momento curioso, que se estendeu por três anos, ao longo dos quais dispôs de um governo híbrido, partilhado entre o governo local e a administração subordinada a Hitler. Em 29 de agosto de 1943, contudo, o Führer determinou a dissolução da parceria, mantendo a independência do exército. Nos dois anos que se seguiram, até o fim da Segunda Guerra Mundial em 2 de setembro de 1945, a Operação Cartago, sobre as nações inicialmente neutras, casos da Dinamarca e da Noruega, empilhou 6.116 cadáveres e deixou 341 pessoas gravemente feridas. O registro que Ole Bornedal faz em “O Bombardeio” sobre esses detalhes espantosamente desconhecidos da Segunda Guerra em seu país só nos levam a inferir que há ainda muito mais a se desvelar acerca do conflito. Sempre é tempo de preservar a paz, mas, se necessário, pegar em armas para restabelecê-la.

Pelos vestígios que alguém deixa, é possível conhecer um pouco de como viveu, o que passou, que postura assumiu nos diferentes momentos de sua trajetória. “A Escavação”, do diretor Simon Stone, vai fundo nesse argumento a fim de contar a história de uma jovem viúva que passa por mais um embate pessoal depois da morte do marido. Em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Edith Pretty e o filho Robert continuam levando a vida como podem, apesar das vicissitudes pela perda recente. Pequenos montes de terra na propriedade em que moram, em Suffolk, na Inglaterra, lhe despertam a curiosidade e ela recorre a Basil Brown, arqueólogo amador, a fim de saber o que pode haver ali. Brown de fato descobre algo importante, tanto que a notícia se espalha e até o Museu Britânico demonstra interesse pelo que existe de misterioso no terreno de Edith. Enquanto Brown conduzia as escavações, afloravam também sentimentos, igualmente plenos de relevância. Em meio a tantas reviravoltas, Edith, mãe extremada, retém o quanto pode a devastadora melancolia que a consome devido a uma grave doença, a fim de poupar o filho, mas ao mesmo tempo, teme pelo destino do garoto. A trilha, decerto mais um dos trunfos da produção, acompanha o processo de desgaste emocional a que a viúva se entrega, bem como a ambientação da história, que acertadamente opta por cenas pontuadas pelo cinza dos dias de tempestade e uma condução mais sutil. Se a intenção do filme foi transmitir alguma lição ao espectador, Stone pode se considerar realizado. Em “A Escavação” fica claro que a vida vai muito além da superfície.

Definitivamente, a maternidade é uma das obsessões de Pedro Almodóvar. No caso de “Mães Paralelas”, o oitavo filme em que trabalha com Penélope Cruz, uma de suas musas, ao longo dos últimos 25 anos, Almodóvar extrai da história, com o auxílio providencial da estrela, as cores e o movimento que caracterizam sua obra, ao passo que Cruz decuplica o potencial dramático do texto do diretor, um casamento que decerto ainda vai muito mais longe. O drama, de 2021, mistura os elementos que fazem de Almodóvar o Almodóvar que o mundo aprendeu a respeitar como o artista incomparável que é, pela ordem, a narrativa visceralmente pessoal de uma personagem plena de nuances, os desdobramentos ético-morais de sua conduta e a elaboração reflexiva sobre um episódio da história política moderna da Espanha. Trata-se da agonia de duas mulheres, que tem as vidas estranhamente imbricadas, remontando à busca feminina por reconhecimento e independência, processo que nunca se completa e cuja necessidade nunca se extingue. Almodóvar tem um dom especial para melodramas e em “Mães Paralelas” as atuações entram na intensidade perfeita quanto a fazer do filme mais uma das tantas preciosidades levadas à tela pelo cineasta, que capta com sensibilidade rara o que suas atrizes querem lhe oferecer.

Comings-of-age, dramas que se desdobram sobre os conflitos ao longo do amadurecimento de um personagem, sempre têm muito a nos dizer a respeito de nós mesmos. Federico Fellini (1920-1993), mestre do cinema e em particular desse gênero, é uma óbvia inspiração de Paolo Sorrentino em “A Mão de Deus” (2021), especialmente por serem ambos italianos, orgulhosos de suas origens e, o principal, de suas famílias. Mas as coincidências entre os dois não se obrigam a seguir nenhum roteiro. Sorrentino parece querer pavimentar uma trajetória que pelo menos chegue perto do sucesso que Fellini alcançou em sua vida profissional. Em “A Mão de Deus”, o diretor — cujo refinamento estético inegavelmente tornou-se marca registrada de seus trabalhos, vide “A Grande Beleza” (2013) —, fellinianamente, transpõe para a tela eventos que pontuaram sua intimidade. Os tipos que habitam seu filme são desabridamente caricatos, um aspecto explorado à larga pelo veterano, que jamais permitiu que nenhum deles resvalasse na vulgares — apesar de chegarem bem perto muitas vezes. Fellini, contudo, sempre dava um jeito para que o charme e o encanto de cada uma daquelas almas sobrepujassem sua natureza irregular, grotesca, bestial até. E Sorrentino segue o mestre.

Ainda há episódios sobre os quais pouco se sabe — ou sobre os quais não se sabe tudo — envolvendo a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O drama britânico “Munique: No Limite da Guerra”, uma adaptação do romance homônimo de Robert Harris, traz ao centro de sua história dois diplomatas, ex-amigos em lados adversários das batalhas, um representante do Eixo, o outro, dos Aliados. Christian Schwochow, o diretor do longa, parte da relação entre os dois personagens a fim de mostrar os desdobramentos da conferência de Munique, em 1938, e o acordo de paz entre Alemanha e Inglaterra que poderia ter nascido da iniciativa, mas restou frustrado. Charmoso, como grande dos filmes que retratam os bastidores de conflitos armados pelos salões suntuosos de palácios ao redor do mundo, “Munique: No Limite da Guerra” joga luz sobre questões básicas para se entender o que levou à eclosão de mais uma série de enfrentamentos entre povos, muito mais devastador que o encerrado vinte anos antes. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) fora a grande responsável por ratificar a hegemonia americana e os Estados Unidos se firmaram como a maior potência bélico-econômica do mundo desde então. Em 1917, a participação efetiva da América, afinada com Inglaterra e França, foi determinante para a vitória da Entente, grupo que reunia essas três nações, que pegou os alemães e italianos desprevenido e cansados depois de três anos de combate. Em 1939, Itália e Alemanha estavam prontas para dar o troco, cada uma liderada por seu facínora. Adolf Hitler (1889-1945), pelo lado germânico, e Benito Mussolini (1883-1945), comandando as tropas italianas, mergulhando o mundo em mais seis anos de caos. Não existe no trabalho de Schwochow, lançado em 2021, intenção de se esconder os jovens que foram desumanizados, seviciados e mortos pelos nazistas, mas a mensagem de esperança do filme chega a ser curiosa. “Munique: No Limite da Guerra” faz mais que apenas motivar a audiência a refletir sobre as causas e efeitos da guerra.

A depender de onde se queira chegar — e de que jeito —, uma origem humilde pode ser um grande obstáculo. Essa é a primeira ideia defendida por “Um Homem de Sorte”, cujos personagens vão entrando numa espiral que mistura aspirações por fortuna e prestígio, de um lado, contra um verdadeiro sistema, organicamente constituído, poderoso e que não tem a menor intenção de ceder espaço a quem quer que seja, do outro. Por que então esses mundos paralelos ousaram se cruzar, afinal? Essa é a pergunta que o filme de Bille August tenta responder. O roteiro, adaptado do romance “Lykke-Per”, escrito pelo dinamarquês Henrik Pontoppidan (1857-1943), prêmio Nobel de Literatura de 1917, e publicado em oito volumes entre 1898 e 1904, puxa a corda do melodrama de tal maneira que, em diversos momentos, se tem a nítida impressão de que ela não vai suportar. Contudo, August, cujo “Pelle, o Conquistador” (1987) foi agraciado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1989, sabe muito bem a hora de sair de cena e deixar que seus personagens falem por si sós. O aspecto eminentemente choroso da história é o que prevalece; entretanto, o pulo de gato no trabalho de August é o modo sorrateiro como escolhe dizer o que nunca é explicitado, mas todos sabemos exatamente do que se trata. O filme de Bille August decerto é um dos mais sofisticados do cinema do século 21, mesmo em se refinando o corte a somente os produzidos pela crescente indústria cinematográfica da Dinamarca, plena de genuínas obras de artes. A sequência da despedida de Per e aquela que poderia ter sido a mulher de sua vida, é sutil, mas impactante, e prova que, malgrado se repitam em dadas circunstâncias, cada filme seu encanto diferente. “Um Homem de Sorte” não foge à regra.

A depender de onde se queira chegar — e de que jeito —, uma origem humilde pode ser um grande obstáculo. Essa é a primeira ideia defendida por “Um Homem de Sorte”, cujos personagens vão entrando numa espiral que mistura aspirações por fortuna e prestígio, de um lado, contra um verdadeiro sistema, organicamente constituído, poderoso e que não tem a menor intenção de ceder espaço a quem quer que seja, do outro. Por que então esses mundos paralelos ousaram se cruzar, afinal? Essa é a pergunta que o filme de Bille August tenta responder. O roteiro, adaptado do romance “Lykke-Per”, escrito pelo dinamarquês Henrik Pontoppidan (1857-1943), prêmio Nobel de Literatura de 1917, e publicado em oito volumes entre 1898 e 1904, puxa a corda do melodrama de tal maneira que, em diversos momentos, se tem a nítida impressão de que ela não vai suportar. Contudo, August, cujo “Pelle, o Conquistador” (1987) foi agraciado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1989, sabe muito bem a hora de sair de cena e deixar que seus personagens falem por si sós. O aspecto eminentemente choroso da história é o que prevalece; entretanto, o pulo de gato no trabalho de August é o modo sorrateiro como escolhe dizer o que nunca é explicitado, mas todos sabemos exatamente do que se trata. O filme de Bille August decerto é um dos mais sofisticados do cinema do século 21, mesmo em se refinando o corte a somente os produzidos pela crescente indústria cinematográfica da Dinamarca, plena de genuínas obras de artes. A sequência da despedida de Per e aquela que poderia ter sido a mulher de sua vida, é sutil, mas impactante, e prova que, malgrado se repitam em dadas circunstâncias, cada filme seu encanto diferente. “Um Homem de Sorte” não foge à regra.