Akira Kurosawa retratou em seus “Sete Samurais”, “Rashomon”, “Yojimbo” e “Sanjuro” histórias de samurais decadentes, vivendo na transição de uma era, do Japão rumo à ocidentalização, mas não de forma tão explícita, e sim abordando questões próprias e morais dos samurais. Guerreiros sem mestres, vivendo entre um passado de disciplina e ética e um presente de corrupção e cinismo. Heróis fragilizados em meio à desintegração do Japão feudal e do tradicionalismo cultural. Essas questões são tão profundas e reveladas de forma tão crua por Kurosawa, que é difícil comparar sua visão com a que nós, do Ocidente, temos do Japão daqueles tempos.
Enquanto Edward Zwick, que filmou o épico hollywoodiano “O Último Samurai”, romantizou a resistência dos samurais diante da modernização do Japão, Kurosawa evocou a decadência interna da classe, corroída por guerras infindáveis, desigualdades e violências. Seus samurais não eram guardiões leais da tradição, mas figuras extremamente humanizadas, cheias de falhas, lutando para se manter éticos em um mundo onde eram vistos como ultrapassados.
Durante o século 19, o Japão rompeu com o isolamento do xogunato Tokugawa, culminando na Restauração Meiji. O imperador retomou o poder, levando o país a uma corrida pela modernização nos moldes ocidentais. Isso quer dizer que tanto a economia, o exército e a administração se transformaram, deixando o antigo sistema feudal, no qual samurais eram sustentados por senhores feudais, desmantelado. Com isso, a classe guerreira foi literalmente banida. Os samurais sofreram um ataque direto que culminou em seu fim definitivo.
Em “O Último Samurai”, Zwick retrata a Rebelião de Satsuma, ocorrida em 1877, liderada por Saigō Takamori na vida real. No enredo, o nome do guerreiro é modificado para Katsumoto, interpretado por Ken Watanabe. Na batalha, os últimos 500 samurais de Saigō enfrentam 30 mil soldados, selando o fim da era dos samurais como classe política e militar. Tom Cruise é o capitão norte-americano Nathan Algren, traumatizado pela Guerra Civil Americana, que cria vínculos fortíssimos com o vilarejo de Katsumoto após ser feito refém na primeira batalha. O soldado americano acaba se juntando aos samurais na luta pela resistência. O personagem de Cruise é inspirado no soldado francês Jules Brunet, enviado ao Japão para treinar as tropas do xogunato antes da queda de Tokugawa. No entanto, ele acabou se juntando aos samurais na Guerra de Boshin, opondo-se às forças imperiais.
Embora com um enredo bastante idealista e dramatizado, retratando o oposto do que Kurosawa costumava mostrar em seus filmes, Zwick consegue exprimir de forma apaixonante e didática como esses conflitos foram muito além da política e do exército. O Japão vivia um conflito de identidade e acreditava que precisava se render ao capitalismo para adentrar no sistema de Estados modernos. Se naquela época havia a necessidade de romper com a tradição, hoje o Japão não se envergonha de seu passado e relembra samurais como Takamori/Katsumoto como heróis. A tradição dos guerreiros é vista com orgulho histórico e como símbolo de valores éticos e identitários.
Edward Zwick gravou “O Último Samurai” na Nova Zelândia por precisar de espaços rurais amplos que remetessem aos campos da época, paisagens que atualmente, no Japão, não são mais tão intocadas. Além disso, os incentivos fiscais do governo neozelandês foram vantajosos para a realização do longa-metragem. A paisagem quase mítica e etérea contribuiu enormemente para a estética imersiva e deslumbrante do filme.
Com um elenco que entrega atuação de tirar o fôlego e um enredo extremamente envolvente, o longa-metragem também vale a sessão, apesar de dispensar o tom crítico, argumentador e reflexivo de Kurosawa. Com quatro indicações ao Oscar, “O Último Samurai” até hoje é celebrado como um belíssimo e grandioso épico do cinema.
★★★★★★★★★★