Ela passou quase 30 anos esquecida em um manicômio; morreu como indigente e foi reconhecida apenas depois da morte

Ela passou quase 30 anos esquecida em um manicômio; morreu como indigente e foi reconhecida apenas depois da morte

No corredor comprido da Colônia, a luz do fim de tarde espalha poeira como pequenas constelações sem batismo. Ouve-se água pingando; uma maca desliza; a ferrugem, paciente, avança nos trilhos. Naqueles anos, a Colônia Juliano Moreira, herdeira de um modelo de longa permanência concebido nas primeiras décadas do século 20, funcionava como enclave: pavilhões numerados, vigilância, dias empilhados. Ali, o cuidado existia no formulário; no corpo, pesava como custódia, com corredores sem fim, portas de ferro e conversas que não chegavam a nascer. Há um timbre que não cabe no corpo. Não vem de papel; vem do fôlego. Um sopro descostura a sala, põe o mundo de pé e o desarruma: “eu era gases puro”, sussurra como quem reinventa a origem. É Stella do Patrocínio. Não pede licença. Dita um reino e, ao dizê-lo, cria linguagem; criando-a, torna-se presença.

Ela nasceu no Rio de Janeiro, em 1941. Numa tarde em Botafogo, caminhava pela Voluntários da Pátria quando a patrulha encostou; perguntaram o nome, pediram um endereço; ela vivia na rua, e onde faltava endereço sobrava carimbo. Vieram o pronto-socorro e, logo depois, o antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro; tinha vinte e um anos e nenhum parente por perto para desfazer a decisão. Em 1966, transferiram-na para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, pavilhões longos, roupa marcada, tempo contado em listas. Não há romance nesse trajeto; há papéis que apertam e uma voz que resiste, mulher negra e pobre catalogada como caso, corpo transformado em arquivo e prova; mesmo assim, a fala não se recolheu.

A cena central, em torno da qual tudo gravita, não cabe numa fotografia; mora no sulco escuro de uma fita cassete. Entre o fim dos anos 1980 e o início dos 1990, a artista Carla Guagliardi e a psicóloga Mônica Ribeiro de Souza atravessavam os pavilhões da Colônia e ligavam um gravador portátil; o clique do botão, o chiado baixo, a luz vermelha acesa, e então a fala de Stella começava a correr. As sessões, às vezes longas, aconteciam em salas de ateliê, varandas, corredores de corrimãos frios e piso encerado; registravam um fluxo que não obedecia ao relógio institucional. O ouvido recebia um corpo inteiro: o ritmo quebrado, o fôlego que acelera, palavras empurrando palavras até inventarem parentescos. Ela própria chamava aquilo de “falatório”, e o falatório virava matéria que acende imagens. Anos depois, parte dessas fitas, hoje preservadas e exibidas, alimentou transcrições, leituras públicas e exposições. Quando Stella nomeia, o mundo muda de peso.

Na virada dos anos 1990, o país começava a refazer o nome do cuidado: a luta antimanicomial saía das salas técnicas para a rua, criava serviços substitutivos e consolidava o 18 de maio como compromisso público. No Rio, a engrenagem custava a ceder; a Colônia seguia como cidade à parte, pavilhões que valiam um bairro, direitos que entravam devagar e muitas vezes não voltavam. É nesse cenário que a fala de Stella opera como desordem fértil. Enquanto o prontuário alinhava sintomas e horários, ela rebatizava o entorno, aproximava bicho e gente, pedra e sopro, vida e morte, derrubava hierarquias antigas e erguia outras, íntimas, insubmissas. As repetições vinham como a linha de uma costura; voltavam ao mesmo ponto para puxar o tecido um pouco mais adiante, até que a roupa do mundo lhe coubesse. Ao dizer, alargava o chão e obrigava o ouvido de técnicos, artistas e visitantes a reaprender a medida do possível.

Sua poesia não se senta à mesa da literatura para pedir credencial. Chega pela boca, não pelo caderno; vem em jorros, com repetições, desvios, imagens que acordam o que parecia encerrado. O que a página não tinha, as fitas trouxeram: pausas, falhas, acelerações, a matéria do fôlego. A transcrição, tornada pública anos depois, recusou lixa e verniz; preservou reiterações, inflexões mínimas, respirações que sustentam sentido, levando a voz para o papel sem exigir obediência. Em 2001, no mesmo ano em que o país deu forma legal à reforma psiquiátrica, “Reino dos Bichos e dos Animais É o Meu Nome”, organizado por Viviane Mosé e publicado pela Azougue Editorial, saiu já sem ela; livro póstumo, saída tardia de um mundo fechado. O título funciona como senha e aviso. Ao reivindicar um reino, ela não busca proteção na metáfora; rebatiza o mundo e impõe outra cartografia.

Há uma cosmologia urgente em sua fala. Bichos e tempestades, o corpo como território em guerra, um Deus que se insinua pela borda do olho, metamorfoses contínuas. Tudo vem sem enfeite, como se a língua precisasse apenas de ar. O espanto está na precisão: imagens que recusam adjetivo e uma lógica própria que redesenha a planta de uma casa, abrindo passagens onde antes havia parede. Ler é escutar e, ao escutar, deslocar-se. O leitor percebe que o manicômio também fala e que, sob pressão, a língua fabrica mundos inesperados. No timbre de Stella, há uma ética do impossível; cada figura convocada devolve um espelho com fendas a quem a escuta.

A história de Stella, recomposta aos pedaços, devolve-lhe o que lhe tomaram: o nome escrito com dois eles, uma cronologia possível, o direito a um rosto que não caiba só no prontuário. O que se reconstitui vem de cadernos e fichas, de vozes que a ouviram de perto, de pesquisas que cruzam datas com as fitas que um dia guardaram o fôlego; e, desse mosaico, vai-se desenhando uma vida atravessada por dores do corpo e por internações que não sabiam terminar. Em 1992, uma crise de hiperglicemia levou-a ao Hospital Cardoso Fontes; amputaram-lhe a perna; de volta ao pavilhão, o apetite se apagou, a conversa rareou, e a infecção que a cirurgia não conteve trabalhou até o desfecho registrado na certidão: parada cardiorrespiratória. Foi sepultada como indigente no Cemitério de Inhaúma, sem lápide, sem nome, apenas um número a serviço do arquivo. O roteiro não encerra nada; abre uma ferida que respira, um vazio que chama pelo que faltou. Depois, a posteridade veio devagar, com as fitas convertidas em páginas, o livro publicado, a presença em salas de aula, palcos e exposições. A voz que nasceu no confinamento começou a circular e, pouco a pouco, retirou-a do escuro com a mesma lentidão de quase tudo o que, no Brasil, envolve mulheres negras e pobres. O reconhecimento chega, mas chega tarde; a cada leitura, põe em causa a história que a queria sem rosto.

A repercussão tem rastro longo. No Museu Bispo do Rosário, instalado no antigo conjunto da Colônia, as gravações vivem como acervo e como ferida. Em 2022, a mostra “O Falatório” devolveu ao público a materialidade da voz; no ano seguinte, a 35ª Bienal de São Paulo aproximou essa linguagem de outras práticas de invenção e dissidência, pedindo ao ouvido outra afinação. Nas universidades, na crítica, em coletivos artísticos, a presença de Stella prefere o descompasso à etiqueta; não se acomoda em gênero, desloca o que se entende por poesia, performance e testemunho.

Os depoimentos que cercam sua obra não chegam ao mesmo lugar. Uns a chamam de patrimônio poético; outros preferem a chave da performance; há quem detenha o olhar na violência do contexto e leia cada verso como peça de prova. Divergem os nomes, permanece o impacto: o compasso irregular que puxa a escuta, as voltas que não são tique, são impulso de avanço, e a delicadeza que irrompe quando ela se demora no gesto trivial, a roupa, a bolsa, o caminhar. O país, acostumado a confundir normalidade com norma, ainda estranha uma beleza que não pede desculpas nem lugar; o que a obra de Stella exige não é acolhida cortês, é a experiência inteira da escuta.

Ouvir Stella é aceitar o desconcerto. A frase perde o corrimão e a sintaxe se inclina; verbos mudam de casa; substantivos chegam com o sal que conserva o que poderia se perder. Há momentos em que tudo parece nascer agora: nomes de coisas ditos como se fossem a primeira vez, a gravidade lida de cabeça para baixo, um sol guardado na gaveta. Em volta, o ambiente não se cala: o ventilador range, a lâmpada pisca, um nome é chamado no posto de enfermagem, as rodas do carrinho de medicação riscam o piso encerado, um molho de chaves atravessa a sala. Aquilo não é ruído, é o contexto que dá escala à fala. A fita leva para dentro do ouvido aquilo que o pavilhão insistia em apagar, e a fala de Stella, encostada nesses sons, ganha um corpo que ninguém pôde retirar.

Esses áudios pedem uma ética de leitura que passa pelo acervo e pela página. No Museu Bispo do Rosário, cada fita tem número e etiqueta; muitas foram digitalizadas para que o chiado não devorasse as sílabas; as transcrições seguem as curvas da respiração, guardam as voltas e as pausas; a edição recua onde seria tentador corrigir. Publicar, aqui, é devolver circulação a uma língua que viveu sob custódia; é aceitar que o que ficou é voz sem corpo, presença tardia. Ao leitor, cabe pôr o fone, respirar junto e sustentar o risco de escutar alguém que o Estado reduziu a prontuário. A tragédia está no quadro inteiro: um arquivo ordenado para que não se perca aquilo que não foi protegido em vida.

É preciso desconfiar das legendas coladas na testa dos outros. O diagnóstico, a ficha, a etiqueta social são nomes que tentam arrumar o que está vivo. Stella desorganiza esse vocabulário; entorta a frase e reordena as escalas de homem, bicho, pedra e sopro, confundindo o catálogo. O efeito é vertigem; o ganho é uma liberdade que se respira, não a do escape, mas a de fabricar instrumentos de ar dentro do espaço que aperta. Entre esses instrumentos está o falatório, prática de sobrevivência, pensamento em voz alta, oficina de fôlego.

Voltar ao início ajuda a medir o alcance da língua quando ninguém espera nada dela. No mesmo corredor, a tarde baixa e a poeira suspensa desenha órbitas; o essencial é a boca que aciona o mundo. “Eu era gases puro”, diz a fala, e a repetição vira fôlego contado, degrau para a imagem seguinte. O corredor dilata; o pavilhão ressoa. Dali em diante, quem lê aceita nomear devagar e, por alguns segundos, concorda com o desconhecido.

Se for preciso uma última cena, que seja Stella à janela, vendo a tarde cair sobre os pavilhões, a língua trabalhando o ar como vidro quente. Lá fora, a cidade segue; aqui dentro, uma gramática nova se escreve do fôlego para a frase. O mundo, na sua fala, abandona o inventário e vira território. Ninguém chega para salvar; fica a linguagem. E quando a linguagem empurra a vida, o que sobra vira papel, e o que importa continua respirando no ouvido de quem lê com o corpo todo.

Revista Bula

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