A escritora que o Brasil leu em segredo: vendeu mais de 1 milhão de exemplares, foi processada pela censura e morreu de câncer aos 69

A escritora que o Brasil leu em segredo: vendeu mais de 1 milhão de exemplares, foi processada pela censura e morreu de câncer aos 69

Na banca de jornal, o sol estilhaçava-se no celofane; o vendedor, que já aprendera a esconder e a revelar, passava os dedos pelas lombadas como quem decifra um cofre. Bastava o olhar. Um título prometia, outro confessava; a polícia já reconhecia nomes. A leitora falava baixo, a moeda tilintava, o volume deslizava para o fundo da bolsa e desaparecia da rua. Mais tarde, um abajur isolado, a casa em repouso; páginas que avançavam depressa, respiração medida. Na margem, a marca do dedo; no miolo, uma vida que ainda não podia dizer seu próprio nome.

Cassandra Rios não nasceu autora; nasceu Odette Pérez Rios, em São Paulo, 1932. Aos 16, em 1948, publicou “A Volúpia do Pecado”. O país vivia a Constituição de 1946 e o governo Eurico Dutra; São Paulo crescia em bancas, revistas populares e romances de bolso, enquanto colégios e paróquias policiavam costumes. Delegacias de costumes e promotores apreendiam o que julgavam “impróprio”, e livrarias e cinemas aprendiam a conviver com rondas. A estreia, uma história de amor entre duas garotas, abriu um corredor que a ficção local evitava. Editoras hesitaram; leitores acorreram. Edições sucessivas circularam nas bancas, sucesso suficiente para chamar a atenção de críticos e autoridades, como registram acervos de jornais da época. A jovem de Perdizes, filha de imigrantes espanhóis, percebeu que havia um país procurando palavras para o que se vivia às escondidas.

A pressão moral não tardou. Pareceres e ofícios da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), então vinculada ao Departamento de Polícia Federal, acumulavam-se: listas de proibição, ordens de recolhimento, laudos que invocavam “moral e bons costumes”. Depois do AI-5, a malha apertou; em 1970, com o Decreto-Lei 1.077, livros e revistas passaram a ser retidos na origem. Gráficas recebiam fiscais; provas tipográficas regressavam carimbadas; caixas já lacradas regressavam ao almoxarifado. “A mais censurada” deixou de ser epíteto e virou rotina. Segundo o Arquivo Nacional e dossiês de época, dezenas de títulos foram interrompidos em fases distintas, da composição à distribuição; a logística do livro transformou-se em percurso de obstáculos.

Em paralelo, a demanda crescia. Estimativas de mercado e acervos da imprensa registram a marca de 1 milhão de exemplares, rara para uma autora brasileira. Havia infraestrutura: distribuidoras abastecendo bancas, formatos de bolso com preço baixo, rotas que alcançavam rodoviárias e cidades médias. Leitores organizaram redes de empréstimo, caixas de sapato, prateleiras improvisadas em salões e pensões. Recortes antigos mostram filas por reedições e cartas assinadas com pseudônimos. Esse tráfego lateral prescindia de chancela acadêmica; buscava um nome comum para aquilo que a esfera pública preferia não admitir.

A bibliografia é extensa. Mais de quarenta romances compõem um arco em que erotismo e afetos femininos sustentam o enredo, não como alegoria edificante, mas como experiência concreta do desejo que se afirma. O país que a censurava por ferir a moral consumia seus livros como quem encontra um vocabulário próprio para a vida; ninguém confisca um idioma que o corpo já aprendeu. Em 1980, a revista Status publicou, em folhetim, trechos de “Eu Sou uma Lésbica”, sob censura prévia em vigor, instituída pelo Decreto-Lei 1.077/1970; segundo as páginas da própria revista, era uma fresta por onde o texto se insinuava no espaço público.

A repressão não agia no vazio. Além da caneta estatal, consolidou-se um circuito opaco de recolhimento e descarte industrial de materiais tidos como impróprios; reportagens e processos de época registram: apreensões, depósitos, cargas desviadas para destruição. Dentro desse horizonte, proibir Cassandra significava expor sua obra ao risco de desaparecimento físico. O leitor fazia o movimento contrário, doméstico e firme: preservar. Encapava o volume com papel pardo, guardava-o entre revistas de variedades, reforçava a lombada com fita adesiva, fazia circular sem chamar atenção.

Cassandra Rios
Cassandra Rios: processada pelo Estado, absolvida pelas bancas

As leituras aconteciam sem pose. Livro dentro de sacola de armarinho, entre revistas de TV, no ônibus intermunicipal, na sala de espera do consultório, em quartos de pensão; dos anos 1950 à abertura política, a rotina era essa: abrir com discrição, avançar até onde desse, guardar quando passos se aproximavam. Hemerotecas da época registram cartas de leitoras pedindo reedições, sugestões de títulos “discretos”, agradecimentos assinados com iniciais. O mérito de Cassandra não foi apenas tratar de lesbianidades; foi deslocar para a página o desencontro entre o que se proclamava em público e o que se vivia no interior das casas. Ao colocá-la nas prateleiras populares, a rede de distribuição trouxe ao balcão das bancas um assunto que se fingia inexistente. Quem lia encontrava ali materialidade da cena que não dependia de aval escolar; uma escrita que confiava nos gestos, na respiração das personagens, mais do que em declarações morais.

A resistência crítica foi vigorosa e, muitas vezes, previsível no vocabulário. Resenhas e pareceres de época repetiam “impróprio”, “obsceno”, “atentatório aos bons costumes”; suplementos literários preferiam ignorar o fenômeno de vendas que chegava às bancas por meio de rede de distribuição popular e edições de bolso. Pesquisas universitárias e acervos de jornais apoiam outra leitura: reavaliar Cassandra implica questionar o filtro que, no Brasil, separa a chamada “alta literatura” do sucesso de massa, distinção que tantas vezes espelha recortes de classe e de sexualidade. Talvez a pergunta útil seja menos o que falta à sua prosa para caber no cânone e mais o que falta ao cânone para reconhecer o país que lia.

Vale ler de perto, rente à página. Em “A Volúpia do Pecado”, a narração encosta na pele; verbos curtos empurram a cena, os parágrafos respiram breve, o gesto prevalece sobre qualquer tese. Diálogos desembocam em ação, como se pensar já fosse tocar. Em “Carne em Delírio”, é a cidade que ordena o desejo: ruas, praças e esquinas funcionam como zonas de risco ou abrigo, e a protagonista aprende a ler o mapa pelo regime de olhares. Não há metáfora redentora à espera; o texto prefere o concreto ao simbólico, deixa marca e vestígio. Tudo isso se passa numa São Paulo que acelera entre o pós-guerra e o início do desenvolvimentismo — no ciclo JK (1956–1961), com o Plano de Metas em marcha —, bondes e ônibus cheios, letreiros luminosos na Augusta, policiamento de costumes rondando praças e salões; o ambiente urbano funciona como engrenagem dramática e como registro do período. Nos anos seguintes, títulos como “O Gamo e a Gazela” e “As Vedetes” deslocaram esse eixo para o centro das vitrines possíveis, chegando a listas de mais vendidos em meados dos anos 1950, conforme cadernos culturais de jornais paulistas e cariocas. A década, com a expansão de editoras populares e a multiplicação de bancas, forneceu infraestrutura e público; o moralismo oficial ainda vigiava, mas a curiosidade crescia. Ao final do período, já não era crível fingir que essa literatura não existia. Quem lia havia escolhido continuar, e as colunas de cultura, a contragosto ou não, passaram a registrar o fenômeno.

Nos autos, as capas aparecem descritas com frieza burocrática; nos anexos, carimbos de tinta escura, lacres e termos de apreensão. A perseguição jurídica não se limitou ao texto, alcançou a autora como figura pública. A DCDP sustentou pareceres que invocavam “moral e bons costumes” e dispositivos da Lei de Imprensa 5.250/1967; depois do AI-5, com o Decreto-Lei 1.077 de 1970, o crivo descia à origem, na gráfica. “Eudemonia” recebeu atenção especial de procuradores. Em 1978, “A Santa Vaca” devolveu ironia à acusação de pornografia que a perseguia havia anos, confusão deliberada entre representação e apologia, entre desejo e delito. Na transição democrática, após a Lei da Anistia (1979), arquivos e hemerotecas permitiram recompor parte dessa marcha de processos e recolhimentos; a reparação simbólica, porém, avançou pouco, e em manifestos e antologias seu nome muitas vezes faltou, enquanto setores da esquerda cultural hesitavam em acolhê-la como par. Apesar do cerco, a leitura seguiu por vias paralelas. Bibliotecas circulantes de bairro, sebos que alugavam por dia, clubes informais em salas de professores e refeitórios de fábricas mantiveram volumes em trânsito. Acervos de jornais registram reedições rápidas; notas de rodapé mencionam esgotados; cartas pedem continuidade de personagens. A popularidade de Cassandra é um fato social que estudamos pouco porque não cabe na narrativa de progresso linear: enquanto o Estado apertava o controle, um público diverso — balconistas, estudantes, datilógrafas, operárias, viajantes de ônibus entre cidades — alargava o alcance. Ao colocar mulheres no centro do próprio enredo afetivo, sua obra circulou em tempos desiguais de leitura, do espanto juvenil à maturidade que lê a cidade como cenário e prova; parte da crítica perdeu a chance de perceber como esse percurso deslocou hábitos e nomeou experiências que a esfera pública preferia manter à margem. No horizonte imediato que se seguiu, a Constituição de 1988 consolidou garantias de expressão e pesquisa que ajudaram a devolver esse passado à luz dos acervos.

Revisitar Cassandra hoje significa mapear uma recepção que ganha corpo. Programas de pós-graduação em história e letras, reedições por selos comerciais e independentes e dossiês em suplementos culturais recompõem a cronologia dos vetos e situam sua escrita na história da censura e das sociabilidades lésbicas no Brasil, com base em fundos do Arquivo Nacional, na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e em arquivos estaduais. Há quem rastreie a cartografia de São Paulo nas narrativas; há quem confronte a linguagem dos pareceres com práticas concretas de leitura e venda em bancas, feiras e sebos. Esse circuito de rua funciona como laboratório empírico: lembra que a literatura também se mede pelo desgaste das capas, pelos carimbos de sebo, pela terceira leitura anotada na margem, pela vida do livro fora da vitrine.

Cassandra Rios morreu em 8 de março de 2002, em São Paulo, aos 69 anos, vítima de câncer, no Hospital Santa Helena. Os obituários registraram pouco: a idade, o lugar, a coincidência com o Dia Internacional da Mulher, e seguiram adiante. Segundo depoimento de Yáskara no documentário “A Safo de Perdizes” (2013), a internação lhe garantiu conforto e um fim sereno; o leito foi possível com o apoio de Luiza Erundina. Ficou a impressão de que a vida, tão barulhenta nas bancas, recebeu um adeus discreto demais para o tamanho do que provocara. Depois, a poeira baixou e levantou de novo. Parte da obra permaneceu em sebos e prateleiras de papel pardo; outra parte voltou em reedições esparsas. Com a redemocratização amadurecida, a digitalização de acervos e a consulta sistemática a hemerotecas e arquivos públicos, a trajetória começou a ser recomposta com mais nitidez: os pareceres, os recolhimentos, as vendas, a persistência do leitor. O país entendeu, aos poucos, que a autora mais vigiada do período também havia dado nome às zonas mudas da experiência cotidiana.

As informações deste perfil foram confirmadas em acervos do Arquivo Nacional e na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, além de registros de imprensa da época consultados.

Resta a cena mínima, que explica o resto. Uma lâmpada acesa sobre páginas marcadas. Alguém encosta o livro na mesa, respira, volta a ler. Enquanto houver essa mão, o que tentaram fechar volta a respirar; e a literatura encontra, de novo, o seu caminho para a vida.

Revista Bula

A Revista Bula é uma plataforma digital brasileira fundada em 1999, que atua como revista e também como editora de livros. Com foco em literatura, cultura, comportamento e temas contemporâneos, adota uma linha editorial autoral, com ênfase em textos opinativos e ensaísticos. Seu conteúdo é amplamente difundido por meio das redes sociais e alcança milhões de leitores por mês, consolidando-se como uma das referências em jornalismo cultural no ambiente digital. Além da produção de conteúdo editorial, a Bula mantém uma linha de publicações próprias, com títulos de ficção e não ficção distribuídos em formato digital e impresso.