A escritora que morreu pobre, foi esquecida numa cova rasa e, décadas depois, voltou ao centro do mundo

A escritora que morreu pobre, foi esquecida numa cova rasa e, décadas depois, voltou ao centro do mundo

No começo era a voz. Vinha da varanda, da poeira, do quintal onde galinhas riscavam sílabas; atravessava portas e ria antes do riso, fazia música de provérbios, juntava vento, goiaba e ferro de engomar numa só frase. Nessa música, ela aprendeu que uma cidade cabe num timbre; que a memória, quando fala no plural, move mapas. Depois a voz ficou baixa e sumiu no mato alto. Em Fort Pierce, a terra se fechou sobre uma cova rasa, sem nome, como se um país pudesse perder a própria audição. Anos adiante, alguém afastou o capim e devolveu o nome à pedra. A voz voltou a circular, com o mesmo riso breve, com a mesma ferocidade mansa, como se a varanda tivesse esperado por ela o tempo todo. Essa voz tinha nome: Zora Neale Hurston.

Muito antes de tudo isso ser reparo e lembrança, ela escrevera uma senha de mundo: “Sou negra e não ofereço nada em forma de circunstâncias atenuantes.” “I am colored but I offer nothing in the way of extenuating circumstances.” Não é bravata, é calibragem. A alegria como inteligência, a primeira pessoa sem pedido de desculpas, a vizinhança inteira respirando dentro de um eu.

Do alpendre para a estrada, a escuta cresceu e ganhou mãos. Nos anos 1930, com a Grande Depressão em curso, ela saiu do banco da varanda para os acampamentos de terebintina, as serrarias abafadas, os jook joints, bares de beira de estrada da comunidade negra rural onde o blues tocava e se dançava até a madrugada, cozinhas de fogão a lenha onde o feijão demorava e as histórias chegavam antes do café.

Era também o tempo do Federal Writers’ Project na Flórida, iniciativa do New Deal criada em 1935 pela Works Progress Administration, que empregava escritores e pesquisadores para registrar a fala do país, do folclore e dos guias estaduais às histórias de vida e aos depoimentos de ex-escravizados; ali, recolher histórias virou tarefa pública e urgência de vizinhança. Cadernos se encheram de provérbios, cantos de jornada e adivinhas; a língua respirava como quem pensa em voz alta. Dessas andanças brotaram “Mules and Men” (1935) e “Tell My Horse” (1938), ambos sem tradução no Brasil, o primeiro puxando a cadeira para a fala em vez de pôr nota de rodapé na pessoa, o segundo trazendo o Caribe em sua mistura de rito e rumor, política e assombro. O que poderia ter virado fichário foi mantido inteiro: o timbre do narrador, as voltas da frase, o riso de esquina que não pede licença. A promessa feita à voz do começo sustenta-se aqui; não reduzir quem conta, mas alargar o espaço; não polir até perder os ossos e sim deixá-los à mostra, como evidência e afeto.

Entre “Mules and Men” e “Tell My Horse” veio “Their Eyes Were Watching God” (1937), publicado no Brasil como “Seus Olhos Viam Deus” (Record, 2002, tradução de Marcos Santarrita), levando para a página aquilo que a varanda sabia dizer. Em Janie Crawford, protagonista de “Their Eyes Were Watching God”, a jornada atravessa amores, estações e perdas até encontrar a própria música. Quando o furacão de 1928 rasga o Okeechobee e as terras de muck nivelam hierarquias, a prosa enxuga os enfeites e ganha músculo; sobrevivência não tolera excesso. Parte da crítica do período rejeitou o livro, acusando-o de leveza e apoliticidade, confundindo alegria com distração e música com omissão. O tempo reposicionou a leitura; não apenas clássico, mas gramática para perceber política na curva de um diálogo, na escolha do verbo, no direito de uma mulher narrar o próprio destino.

Enquanto a ficção e o arquivo se adensavam, havia também a artesã da própria lenda. Inventava bordas, aparava biografias, organizava a vida como quem monta um palco. Em “Dust Tracks on a Road” (1942, sem tradução no Brasil), a autobiografia recusa o confessionário como espetáculo; prefere parábola à cicatriz exposta, usa luz indireta sem apagar o que importa, alterna anedota e reflexão como quem oferece cadeira na varanda antes da pergunta difícil. O livro, com sua montagem de espelhos e recuos, ganhou o Anisfield-Wolf Prize em 1943 e firmou uma ética: descrever a beleza do comum com precisão, resgatar nomes do esquecimento e devolvê-los ao uso diário, não como vitrine, mas como trato.

Zora Neale Hurston
Zora Neale Hurston, em 1938

Em 1948, uma acusação que se provaria falsa feriu seu nome; a imprensa apressada fez eco e, mesmo quando o caso caiu, a sombra não desgrudou. Vieram então os trabalhos esparsos, o retorno a cidades pequenas, a solidão que confunde independência com abandono. Em agosto de 1955, numa carta ao jornal “Orlando Sentinel”, diário de Orlando, posicionou-se contra integrações escolares impostas por decreto, temendo que a troca de paredes não garantisse ensino melhor e defendendo a excelência de escolas negras e a autonomia como caminho. A posição lhe custou aliados e convites e alimentou a caricatura que quiseram impor. Quando a saúde cedeu, o país que ela ajudara a ouvir passou por ela em silêncio; em 1960, a terra de Fort Pierce a recebeu sem placa e por muito tempo ninguém soube onde começar a oração.

Depois da lápide, começou a segunda vida. Em 1975, um ensaio de Alice Walker puxou o fio do nome perdido e reacendeu a conversa em salas de aula e jornais; reedições chegaram às prateleiras, clubes de leitura voltaram-se para “Their Eyes Were Watching God” e professores refizeram planos de curso. Desde 1990, Eatonville abriga um festival anual em sua honra e a cidade retorna à cena não como cenário, mas como memória ativa. Em 2018, “Barracoon”, manuscrito de 1927, enfim veio a público. No Brasil, saiu como “Olualê Kossola: As Palavras do Último Homem Negro Escravizado” (Record, 2021, tradução de Bhuvi Libanio). O livro traz as entrevistas com Kossola, nome de nascimento de Cudjo Lewis, iorubá do antigo Daomé, capturado em 1860 e levado ao Alabama no “Clotilda”, último navio negreiro a aportar no país, depois cofundador de Africatown em Mobile. As falas foram preservadas no ritmo do próprio narrador, com a dignidade das pausas e a gravidade das repetições. Por décadas, o livro foi recusado por não alisar a fala. Publicado, impôs-se como documento e gesto: a página não corrige a voz, abriga-a.

O que esse conjunto de livros faz ao país que a gerou e a esqueceu: devolve o direito à primeira pessoa sem atenuantes; desmonta a fantasia de que realismo é uniforme único e mostra que o dialeto pode ser arquitetura de pensamento; prova que o humor não distrai da análise, afia a análise; reorganiza mapas, de Eatonville a Africatown, das bibliotecas que antes a ignoravam aos currículos que hoje a adotam, da varanda ao arquivo. Ensina que “Mules and Men” e “Tell My Horse” escutam o cotidiano como quem lê um tratado; que o romance “Their Eyes Were Watching God” faz da conversa uma forma de justiça; que “Dust Tracks on a Road” recusa a vitrine da dor e insiste na luz oblíqua do vivido; que “Barracoon” preserva o timbre de Kossola não por exotismo, mas por respeito, e que respeito, ali, é rigor de verdade e afeto. Resultado: um país que se pensava de olhos treinados aprende, de novo, a escutar. Não com solenidade de tribuna, mas com a gravidade de quem se senta na varanda e aceita que a verdade tem cadência. Esses livros não pedem desculpas por existir; convidam o leitor a mudar de lugar. E, ao mudar de lugar, a língua muda também, mais porosa, mais justa, mais capaz de nomear o que antes só passava como ruído.

Essa atenção tem efeitos. As gravações de cantos de trabalho, as listas de provérbios e as histórias que mudam a cada narrador desmontam a fantasia de um povo monolítico. O arquivo, fiado com linhas de fala, devolve sutilezas, pausas que significam, risos que protegem, metáforas que negociam perigo. A ficção, alimentada por essa colheita, oferece mais que enredo; oferece um modo de ver. É como se ela tivesse aberto janelas novas na casa chamada América e, por elas, a casa, ao olhar para fora, percebesse que o quintal, por dentro, já era outro país.

Há ainda a lição territorial que começa e retorna a Eatonville. A cidade não é só cenário, é endereço de volta. Todo janeiro, as ruas se enchem de leituras ao ar livre, mesas comunitárias e painéis de lembrança; não se celebra uma estátua, mas uma prática de fala. Aquele nós da infância virou hábito cívico; crianças e velhos dividem o mesmo banco, o mesmo horário de sol. O gesto local religa livros e chão e confirma que cânone precisa de mapa, placa e esquina, nomes próprios que impedem o esquecimento de virar regra.

A biografia resiste a slogans. Quem quiser, encontrará contradições, pausas e teimosias; e, por baixo delas, uma coerência entre forma e gesto. A escritora que ergueu a língua da varanda ao patamar do livro foi a pesquisadora que recusou transformar pessoas em dados, a professora de turmas pequenas que acreditou que excelência não depende de auditório, a cidadã que pagou o preço de pensar por conta própria. E há a imagem precisa, de voltas completas: nos anos 1930, uma mulher ergue o gravador de rolo e encosta o ouvido numa varanda de Eatonville; em 1973, outra mulher afasta o capim em Fort Pierce e endireita uma lápide com “Genius of the South”. Entre esses gestos, o país reaprende a se escutar.

No fim da tarde, quando o calor baixa e a luz acende poeira no ar, alguém abre um exemplar gasto na varanda de Eatonville e as letras fazem som, como se tivessem guardado o coro da rua. Longe dali, em Fort Pierce, a pedra com “Genius of the South” parece inclinar-se para ouvir; em Africatown, um menino tenta desenhar no ar a sombra do “Clotilda” e descobre que história também é gesto. Em salas de aula sem luxo, professores passam de mão em mão “Their Eyes Were Watching God” e a página, de repente, vira espelho; nos clubes de leitura que renasceram desde os anos 1970, alguém lê em voz alta um provérbio recolhido em “Mules and Men” e a cozinha muda de tamanho; quando “Barracoon” entra em cena, o ritmo de Kossola faz silêncio no grupo e o silêncio, ali, é respeito. Nada disso é solenidade; é o país aprendendo outra vez a ficar à escuta num banco de praça.

Quem observa de perto entende. Não se trata de monumento, mas de movimento. As frases que vieram da varanda continuam caminhando pela cidade; a cada reedição, um mapa se desloca alguns centímetros; a cada leitura pública, uma criança descobre que o seu modo de falar cabe num livro; a cada festa de janeiro em Eatonville, o passado e o futuro trocam de lugar sem pedir licença. E, se um dia ela foi deixada num campo sem nome, agora os nomes se multiplicam, ruas, bibliotecas, festivais, cadernos escolares. O país que a esqueceu descobre, tardiamente, que não há moral pronta, há timbre, e que timbre, quando alguém escuta direito, vira avenida.

Se for preciso resumir em uma imagem, fique com esta. Duas cadeiras encostadas na beira da noite. Numa, uma mulher com caderno no colo recolhe histórias como quem salva nascentes. Noutra, décadas depois, alguém lê em voz alta e a vizinhança responde com riso breve, lágrima leve e um amém sussurrado. Entre as duas cadeiras, o caminho inteiro, do silêncio à escuta, da escuta à linguagem que devolve futuro. Enquanto houver varanda, banco de praça, provérbio que morde e alegria que pensa, esses livros continuarão a fazer o que fazem de melhor, ensinar um país a reconhecer a própria voz e dançar no compasso dela.

Revista Bula

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