A madrugada subia como vapor de chaleira. Fevereiro de 1963: Londres atravessa o Big Freeze, neve empilhada nas calçadas desde dezembro, canos estourados, trens atrasados, crianças sem aula. As chaminés tossiam carvão. Em Primrose Hill, bairro de Camden, ao norte do Regent’s Park, em um andar alugado e frio, o gás de cidade assobia na cozinha; duas canecas de leite, pão com manteiga, portas vedadas para reter calor. Do lado de fora, o vento afia esquinas; dentro, relógios e respirações insistem. Ela escreve antes do amanhecer, não para explicar nada, mas para dar forma ao frio que ficou.
Ela tinha trinta anos. No passaporte e nas fotografias, a promessa de uma figura disciplinada, penteado exato, boca firme. Antes do desmoronamento veio a ascensão: Boston, 1932, cadernos cedo de linhas apertadas, o rigor do Smith College; em 1955, a Fulbright a leva a Newnham College, Cambridge. Em fevereiro de 1956, na noite do “St. Botolph’s Review”, a timidez racha; meses depois, o casamento. Sob o mesmo teto, dois poetas: leituras públicas, páginas revistas na cozinha fria de Court Green, em Devon; “The Colossus and Other Poems” (1960); uma filha (1960) e um filho (1962); mais tarde, Londres. Era um retrato fácil, por isso enganoso. O que importava não cabia nas fotos; acontecia quando ninguém via, nas horas arrancadas antes do amanhecer, enquanto o país, no grande gelo de 1962–63, custava a aquecer.

Em janeiro de 1963, chega às bancas no Reino Unido o romance que ela assina como Victoria Lucas, “The Bell Jar” (A Redoma de Vidro). Poucas semanas antes da madrugada final, o romance recolhe um verão em Nova York e um hospital em Boston e os devolve em ficção, com humor de lâmina que fere sem alarde. Não é estreia; é balanço íntimo convertido em forma, um modo de afiar a visão quando o resto falhasse. A prosa avança com a economia de quem conhece o preço de cada palavra; mais do que confissão, método. Se a vida entra, é para ser calibrada: corta-se o excesso até que reste, preciso, o que doía. A edição americana viria apenas em 1971, já com o nome da autora. No Brasil, o livro teve diferentes traduções e edições; entre as recentes, as da Biblioteca Azul: a tradução de Chico Mattoso (2014, reeditada em 2019) e a edição ilustrada com nova tradução de Ana Guadalupe (2023), com ilustrações de Beya Rebaï.
Depois do livro, o frio. O inverno de 1962-63 não foi apenas meteorologia; rebaixou a rotina ao essencial. Londres parecia comprimida num tubo de ensaio. Pela janela da casa vitoriana de Primrose Hill, com a placa azul que assinala o endereço onde W. B. Yeats viveu na infância, o jardim tinha a rigidez opaca do vidro. Dentro, duas crianças pequenas; a mãe vedava frestas com toalhas, aquecia leite, convertia a cozinha em abrigo. Em torno, uma solidão adensada pelo rumor público da separação, desde o outono de 1962. O que se sabia era sussurro: ele partira. O resto ficou no vocabulário confuso dos íntimos.
A essa experiência material de cerco, ela responde com trabalho. Febre? Disseram febre; era disciplina diária. Antes das sete, antes da casa acordar, o corpo à mesa, o ar cortante, a caligrafia inclinada sobre cadernos. Entre outubro de 1962 e o começo de fevereiro de 1963, chegam, um a um, os poemas que fariam “Ariel”: “Daddy” (Papai) e “Lady Lazarus” no outono; “Edge” na primeira semana de fevereiro. O que sai dessas horas tem a chama constante de uma lâmpada a gás. Não irrompe como manifesto. Sustenta uma nota única até que o metal vibre no limite. Poemas que pesam a própria ferocidade e organizam afetos extremos com precisão de arquiteta. O tom é de fim, mas a sintaxe recusa o colapso; cada linha, um degrau polido, frio o bastante para queimar.
Há, aqui, uma ética de oficina: ela não se entrega à providência biográfica, não desculpa falhas em nome de trauma, não cobre a dor com folha de ouro. O que costuma chamar-se confessional, neste trabalho, obedece à disciplina de uma montadora. Toma-se a experiência, redistribuem-se pesos, o excesso vai para o chão como aparas; corta-se o coro dos lugares-comuns, deixa-se a frase na temperatura exata para que a queimadura só se revele depois. A intensidade, tantas vezes vendida como descontrole, em Plath é compasso: um pulso que mede a fala. Se a voz parece incandescente, é porque ela dosou o oxigênio.
Também é preciso lembrar a geografia do ofício. No inverno de 1962-63, o trabalho exigia logística: canos congelados, baldes de água aquecida na chaleira, toalhas nos vãos; a cozinha, único cômodo habitável. Em Primrose Hill, num sobrado alugado e frio, o gás de cidade aquecia mais o ar do que as mãos; ao fim da tarde, os apagões; ao amanhecer, o hálito fazia névoa. Escrever com o corpo tremendo, sem água corrente, ao lado de dois sonos infantis; escrever antes das sete, quando a casa ainda não pedia nada: essa constelação de pequenas violências e cuidados foi a alavanca do livro que se fechava. As linhas duras dos poemas parecem copiadas das quinas de uma cidade congelada; a luz oblíqua das manhãs entra na página como faca fria. E, ainda assim, há uma delicadeza obstinada reservada aos filhos: as canecas, o pão, a porta vedada. Esse contraste, mais do que qualquer escândalo, sustenta a permanência da obra.
E, no entanto, rumores insistem. O amor que servira de laboratório vira tribunal de bairro; o nome dele circula como senha para rancores públicos. E Assia Wevill entra em foco: nascida em Berlim, criada no Mandato Britânico da Palestina, poliglota, trabalhava em publicidade e tradução em Londres; à época, era casada com o poeta David Wevill. No verão de 1962 cruza o caminho de Hughes; em setembro, a separação deixa de ser sussurro. No começo de dezembro, ela sai de Court Green, em Devon, e sobe com as crianças para um sobrado em Primrose Hill. Londres então afunda no inverno prolongado: semanas abaixo de zero, apagões no fim da tarde, ônibus que falham, gelo por dentro do vidro das janelas. As amizades racham, as contas apertam, a rotina se estreita entre consultas, mercado e escrita nas primeiras horas. O casamento fora motor de trocas criativas e campo de tensões, autoria, ambição, ciúme. Ele já tinha nome; ela, agora, o conquistava. Nada disso explica tudo; é o bastante para dar peso ao que veio.
O dia final se escreve com verbos pequenos. 11 de fevereiro de 1963, na casa vitoriana de Primrose Hill. Acordar cedo, aquecer leite, cortar fatias, vedar portas. O gás de cidade, rico em monóxido, assobia no forno; do outro lado, o quarto das crianças fica selado com toalhas. As palavras de polícia pertencem ao prontuário; na casa, a lógica era proteger os filhos. O gesto seguinte foi um pacto com a matéria muda do mundo. O jornalismo tenta dramatizar; aqui, a gravidade vem do despojamento: forno aceso, gás, o corpo que cessa. Trinta anos. Lá fora, o inverno persiste. O que se impõe, passadas décadas, é o som laico da circunstância: uma batalha privada perdida numa cidade pública, num dia de frio extremo.
A partir daí, o mito se move com rapidez, como neve empurrada por carros de manhã. O mito organiza prateleiras, define leituras, escolhe fotos. Em 1965, viúvo e executor do espólio, Ted Hughes prepara para a Faber a primeira edição de “Ariel”; trabalha sobre o manuscrito que ela deixou, altera a ordem, suprime poemas, acrescenta outros e muda o desfecho. O livro é de Sylvia; a montagem é dele. Em 1966, sai a edição americana com prefácio de Robert Lowell; em 1971, “The Bell Jar” cruza o Atlântico com o nome dela na capa; em 1998, Ted Hughes publica o seu livro de poemas “Birthday Letters”, reabrindo feridas em praça pública; em 2004, “Ariel: The Restored Edition” repõe a seleção e a sequência deixadas por ela. O debate não cessa; recomeça o jogo de custódia, quem define a ordem, o que entra, o que some, o que é fidelidade e o que é curadoria. O mito precisa de vilões e protetores; a obra, de leitores que aceitem a incerteza e voltem à página.

Houve ainda a apropriação ideológica, inevitável quando uma escritora ocupa uma lacuna simbólica: nos anos 1970, leituras feministas e salas de aula a converteram em emblema de pressões que persistem. Nos anos 1980-90, o debate se adensou: em 1989, Anne Stevenson publica “Bitter Fame” (no Brasil, Amarga Fama, trad. Lya Luft) e paga o preço da controvérsia; em 1991, Jacqueline Rose, em “The Haunting of Sylvia Plath”, interroga a “posse” da voz; em 1994, Janet Malcolm, em “The Silent Woman” (no Brasil, A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os Limites da Biografia, trad. Sergio Flaksman), desmonta o teatro de custódia e disputa. Que tudo isso exista não diminui a singularidade da escrita; tampouco a livra das simplificações póstumas. O problema não está na leitura política, mas na leitura preguiçosa. A crítica que a conserva viva a devolve à recusa do sentimentalismo e da autoindulgência, ao ouvido para a crueldade dos substantivos. A poeta que se revela em “Ariel” não suplica piedade; cobra exatidão. Se há lamento, disciplina-se na métrica; se há fúria, condensa-se numa imagem que não pede likes.
Passado o choque, a literatura executa seu trabalho lento. Dos anos 1970 em diante, ela sai das manchetes e entra nas ementas; a voz de Plath desliza do registro confessional para um lugar menos colonizado por rótulos. Em 1982, os “Collected Poems” recebem o Pulitzer e consolidam um modo de leitura que privilegia oficina e forma. Em 2004, “Ariel: The Restored Edition” reposiciona o conjunto e reabre o ouvido. Lê-se a música interna que organiza os poemas; lê-se a arquitetura do enjambement; percebe-se a ironia seca de quem aprendeu a dizer muito com pouco. Deixa-se de procurar a autora em cada imagem; reconhece-se a invenção na economia cortante, na montagem que recusa o espalhafato, na claridade fria que não pede consolo. É quando a figura pública, inevitavelmente trágica, cede um pouco de espaço à artesã. A literatura, que não cura nada, faz justiça ao menos à competência rara dos que conseguem nomear o inominável sem lágrimas supérfluas.
E se a biografia insiste (ela sempre insiste), que venha pela margem: datas, endereços, desentendimentos, a poeira de arquivos. No centro, fique o que resiste à cronologia: o trabalho. Houve nomes que pesaram mais que páginas; houve uma terceira pessoa que não pediu lugar e pagou por ele; houve um país paralisado por um inverno e, apesar disso, funcionando. Nada disso altera a experiência decisiva do leitor diante de um poema, quando os nomes próprios perdem volume e o idioma ganha peso específico. O inverno foi cenário, não explicação. Maturidade literária não é subproduto de tragédia; é exercício repetido, falha corrigida, frase afinada até a nota certa. A prova está no fôlego que aqueles poemas mantêm, décadas longe da casa em que foram escritos.
Não é o mito que atravessa o degelo; é a página que ficou. Escritas antes do amanhecer, guardam o silvo do gás e o branco da rua; recusam indulgência, pedem escuta; deixam a dor entrar apenas quando vira palavra exata. Entre edições, prefácios e disputas, permanece uma claridade de trabalho. Fecha-se o livro: não há vitória nem moral, há nitidez. O frio de fora continua inverno; o de dentro encontra nome. E esse nome, dito com precisão, persiste aceso onde importa: na mão que lê.