Não obstante, para uma boa convivência social, as vantagens que compõem uma sociedade devem ser distribuídas de maneira equitativa entre todos os seus membros. Todavia, num agrupamento de homens, nota-se a tendência contínua de cumular, no menor número desses integrantes, os privilégios, o poder e a felicidade, restando para a maioria miséria e morbidez. Apenas com boas leis se podem evitar esses abusos.
Cesare Beccaria foi um filósofo, jurista e criminologista italiano, conhecido por sua intransponível contribuição para o Direito, ao escrever a obra “Dos Delitos e das Penas” em 1764. A obra obteve um sucesso notável, sendo traduzida em 1766 e tendo sete edições em seis meses. A primeira edição americana foi publicada em 1777. Desde então, traduções em muitas outras línguas surgiram. Com sua capacidade moral e intelectual, ele ousou levantar um questionamento naquele tempo, considerado uma barbárie: qual a origem das penas e em que se funda o direito de punir? Para Beccaria, somente a necessidade legítima pode compelir os homens a ceder uma parcela de sua liberdade. Ele compreende que o ser humano é, por natureza, sujeito ao despotismo, razão pela qual se torna necessária uma proteção contra as usurpações individuais. A soma dessas parcelas de liberdade, voluntariamente sacrificadas em nome do bem comum, constitui o verdadeiro fundamento do direito de punir.
Mas qual será o problema que perdura por séculos e que, aqui no Brasil, parece que nunca terá fim? A falta do espírito das leis.

Vivemos hoje uma crise no Processo Penal Brasileiro, no qual a punição se tornou a repetição de um castigo, não um fator preventivo. É preciso parar para ver o que está acontecendo bem debaixo dos nossos olhos e, para isso, não se faz necessário ser um jurista, estudante ou formado em Direito; é necessário pensar, porque a verdade é uma só em toda parte: a fadiga de viver em meio aos temores.
As penitenciárias brasileiras transbordam. O Judiciário, atolado em formalismos e repetições, está imobilizado. O processo penal tornou-se um ritual esvaziado de consciência: punir virou reflexo, não mais escolha; um ato de delegação, não de reflexão. Não se educa, não se previne, não se julga com autonomia — apenas se sente, como quem carimba o destino.
Beccaria, com a clareza dos que enxergam antes do tempo, já anuncia que “toda pena que não deriva da absoluta necessidade é tirânica”. E o que temos hoje, senão um sistema penal movido por automatismos, em que a cognição do juiz é obtida pela pressão, pela cultura da tradição? Julgar é um ato ético. Exige coragem de pensar por si, como nos ensinou Kant. Exige consciência do outro, como lembrava Arendt. E, sobretudo, exige o que Beccaria tanto defendia: o compromisso com a razão, a justiça e a liberdade.
Este ensaio é, portanto, um chamado à memória filosófica do Direito. Um esforço de relembrar que, sem juízes que pensam com originalidade e humanidade, o processo penal não é mais instrumento de justiça, mas apenas o prolongamento sofisticado da barbárie. No cenário contemporâneo, especialmente no Brasil, observa-se uma preocupante fossilização do Direito Penal. Além disso, o automatismo judicial, fruto da sobrecarga de processos, da pressa institucional, elimina qualquer espaço para a reflexão ética. Recuperar o espírito das leis é, portanto, um ato revolucionário. Beccaria bem disse que ficaria muito feliz se fosse contestado por aqueles que ele chamava de discípulos abscônditos e pacíficos da razão e que escrevia somente para quem sabia pensar. Se Beccaria estende sua voz contra as sombras da barbárie, que não nos falte hoje a mesma lucidez.