Beccaria gritou em 1764. O Brasil não ouviu. E ainda não ouve

Beccaria gritou em 1764. O Brasil não ouviu. E ainda não ouve

Não obstante, para uma boa convivência social, as vantagens que compõem uma sociedade devem ser distribuídas de maneira equitativa entre todos os seus membros. Todavia, num agrupamento de homens, nota-se a tendência contínua de cumular, no menor número desses integrantes, os privilégios, o poder e a felicidade, restando para a maioria miséria e morbidez. Apenas com boas leis se podem evitar esses abusos.

Cesare Beccaria foi um filósofo, jurista e criminologista italiano, conhecido por sua intransponível contribuição para o Direito, ao escrever a obra “Dos Delitos e das Penas” em 1764. A obra obteve um sucesso notável, sendo traduzida em 1766 e tendo sete edições em seis meses. A primeira edição americana foi publicada em 1777. Desde então, traduções em muitas outras línguas surgiram. Com sua capacidade moral e intelectual, ele ousou levantar um questionamento naquele tempo, considerado uma barbárie: qual a origem das penas e em que se funda o direito de punir? Para Beccaria, somente a necessidade legítima pode compelir os homens a ceder uma parcela de sua liberdade. Ele compreende que o ser humano é, por natureza, sujeito ao despotismo, razão pela qual se torna necessária uma proteção contra as usurpações individuais. A soma dessas parcelas de liberdade, voluntariamente sacrificadas em nome do bem comum, constitui o verdadeiro fundamento do direito de punir.

Mas qual será o problema que perdura por séculos e que, aqui no Brasil, parece que nunca terá fim? A falta do espírito das leis.

Dos Delitos e das Penas
Dos Delitos e das Penas, de Cesare Beccaria (Martin Claret, 124 páginas, tradução de Torrieri Guimarães)

Vivemos hoje uma crise no Processo Penal Brasileiro, no qual a punição se tornou a repetição de um castigo, não um fator preventivo. É preciso parar para ver o que está acontecendo bem debaixo dos nossos olhos e, para isso, não se faz necessário ser um jurista, estudante ou formado em Direito; é necessário pensar, porque a verdade é uma só em toda parte: a fadiga de viver em meio aos temores.

As penitenciárias brasileiras transbordam. O Judiciário, atolado em formalismos e repetições, está imobilizado. O processo penal tornou-se um ritual esvaziado de consciência: punir virou reflexo, não mais escolha; um ato de delegação, não de reflexão. Não se educa, não se previne, não se julga com autonomia — apenas se sente, como quem carimba o destino.

Beccaria, com a clareza dos que enxergam antes do tempo, já anuncia que “toda pena que não deriva da absoluta necessidade é tirânica”. E o que temos hoje, senão um sistema penal movido por automatismos, em que a cognição do juiz é obtida pela pressão, pela cultura da tradição? Julgar é um ato ético. Exige coragem de pensar por si, como nos ensinou Kant. Exige consciência do outro, como lembrava Arendt. E, sobretudo, exige o que Beccaria tanto defendia: o compromisso com a razão, a justiça e a liberdade.

Este ensaio é, portanto, um chamado à memória filosófica do Direito. Um esforço de relembrar que, sem juízes que pensam com originalidade e humanidade, o processo penal não é mais instrumento de justiça, mas apenas o prolongamento sofisticado da barbárie. No cenário contemporâneo, especialmente no Brasil, observa-se uma preocupante fossilização do Direito Penal. Além disso, o automatismo judicial, fruto da sobrecarga de processos, da pressa institucional, elimina qualquer espaço para a reflexão ética. Recuperar o espírito das leis é, portanto, um ato revolucionário. Beccaria bem disse que ficaria muito feliz se fosse contestado por aqueles que ele chamava de discípulos abscônditos e pacíficos da razão e que escrevia somente para quem sabia pensar. Se Beccaria estende sua voz contra as sombras da barbárie, que não nos falte hoje a mesma lucidez.